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Melodrama soft desbanca favoritos à Palma de Ouro

‘Shoplifters’ leva prêmio que muitos apostaram que seria de Spike Lee ou da libanesa Nadine Labaki

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Hostilizado pela intelectualidade como sendo um gênero apelativo, de fácil digestão, o melodrama encontrou no japonês Hirokazu Kore-eda um artesão apto a lapidar sua cartilha de um jeito brando, elegante e com pouco açúcar, capaz de convencer a crítica do valor estético de um bom chororô: levou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2018 por “Shoplifters” assim, na manha. Seu longa-metragem é a crônica de costumes de uma família de trambiqueiros que sacrifica seus interesses para ajudar uma garotinha. 

Contrariando todos os prognósticos, todos os simbolismos políticos e todo o bom senso, o cineasta de 55 anos, dono de uma produtividade invejável (faz dois longas por ano), conquistou o prêmio mais cobiçado da Croisette com um ensaio sobre a bondade. Neste ano sem Brasil no páreo da Palma, a atriz australiana Cate Blanchett, presidente do júri, podia ter feito história ao dar o troféu cannoise a uma mulher (a libanesa Nadine Labaki era a mais cotada) ou um mito da militância negra, caso de Spike Lee, que concorria com seu melhor filme em anos, “Blackkklansman”. Mas Cate preferiu o “caminho do meio”, optando pelo folhetim sereno de Kore-eda. 

“Talvez o acerto nesse longa venha de algo que herdei de meus tempos no documentário, filmando relatos de moradores de periferia para canais de TV: a atenção aos detalhes”, disse o vencedor Hirokazu Kore-eda ao JB, sem acreditar que a Palma era sua. “Eu tenho paixão pela natureza humana em sua capacidade de se render aos sentimentos”. Desde 1997, o Japão, dono de uma das mais ricas filmografias do mundo, não ganhava a Palma: a última veio há 21 anos por “A enguia”, de Shoei Imamura, e ainda assim ele empatou com Abbas Kiarostammi e seu “Gosto de cereja”. O próprio Shoei havia conquistado o prêmio antes, com “A balada de Narayama”, em 1983.  Mas este não faz parte das influências de Kore-eda, mais afeito ao inglês Ken Loach (de “Eu, Daniel Blake”) e seu marxismo. 

Falar do povo de maneira encantadora fez ele convencer Cate de que seria a melhor – e menos explosiva – escolha. No time de jurados, estavam a cantora e compositora Khadja Nin (Burundi), duas atrizes (a francesa Léa Seydoux e a americana Kristen Stewart), a diretora Ava Duverney (EUA), os também realizadores Denis Villeneuve (Canadá), Andrey Zvyagintsev (Rússia) e Robert Guédiguian (França) e o ator chinês Chang Chen. Na preferência deles, coube dar o Grand Prix (a honraria de mais valor depois da Palma) a Spike Lee e seu “BlackKklansman”. 

“Este filme é um toque de despertar para acordar o mundo para as coisas erradas que eu vejo e ouço pelas ruas”, disse o diretor de 61 anos. Nitroglicerina em forma de thriller, seu longa inédito, com estreia marcada para agosto, recria a luta real do policial negro Ron Stallworth (interpretado por John David Washington) para se infi ltrar numa célula supremacista branca do Colorado fazendo ligações para a Ku Klux Klan. Ele ainda recebeu uma menção honrosa do Júri Ecumênico, entidade católica que premia longas ligados à inclusão, seja de gênero, cor ou nacionalidade. 

A láurea principal dessa organização cristã ficou com o trágico “Capharnaüm”, de Nadine Labaki, encarada como “a” favorita das favoritas. Seu filme – sobre um menino de 12 anos que processa os pais por abandono – foi galardoado com o Prêmio Especial do Júri de Cate. “Fui procurar nas ruas a verdade da exclusão de crianças que passam fome”, disse a diretora, que, em 2013, filmou um dos episódios de “Rio, eu te amo” em solo carioca. 

Resolvidas estas três categorias maiores do palmarês, Cate fez bonito e criou uma Palma de Honra, para distinguir alguém que ela, já no primeiro dia do evento, classificou como “uma fonte histórica de inovação para o cinema”: Jean-Luc Godard. Aos 87 anos, o suíço nascido em Paris e famoso pelos seus experimentos de Nouvelle Vague (tipo “Acossado”, de 1960), entrou na competição com “Le livre d’image”, um experimento semiológico sobre o imperialismo e a demonização do Estado Islâmico. 

Ele não veio a Cannes, mas deu uma entrevista por Facetime dizendo: “As pessoas andam me perguntando sobre 1968, mas o que eu posso dizer desse assunto é que faço parte de um tempo no qual não se aprendia cinema em escolas, mas sim vendo filmes… às vezes os filmes mais obscuros… e tentando extrair sentido deles, isolando cada imagem”, disse Godard, que cedeu um fotograma de um de seus clássicos, “Pierrot le fou - O demônio das 11 horas” (1965), para ser usado como pôster do festival.     

Entre os prêmios de interpretação, venceram a atriz Samal Yeslyamova, hipnótica no drama russo “Ayka” (sobre uma jovem em busca de sustento), e Marcello Fonte. Ele ganhou pelo faroeste contemporâneo “Dogman”, que veio de Roma mostrando a vingança de um tratador de cães contra o amigo que abusou de sua boa-fé. Foi Roberto Benigni (de “A vida é bela”) quem veio apresentar o prêmio de Fonte, falando um francês macarrônico. Ainda sobrou para a Itália um prêmio de melhor roteiro, para “Lazzaro felice”, uma investigação sobre o dia a dia de uma comunidade de plantadores de fumo. Sua diretora, Alice Rohrwacher, dividiu a láurea de dramaturgia com a trupe iraniana de “3 Faces”, escrito por Nader Saeivar com o diretor Jafar Panahi. Este não pôde comparecer ao evento por estar detido no Irã em prisão domiciliar por desafiar ditames de seu governo. “Que bom a direção ter tido a coragem de selecionar o filme de Jafar apesar disso”, disse Nader. 

‘Cold War’ ?ca com melhor direção 

Entre os cineastas com cacife para o prêmio de melhor diretor, Cate fez bonito ao escolher o polonês Pawel Pawlikowski, que celebra a paixão nos tempos da Cortina de Ferro europeia em “Cold War”, um drama romântico em preto e branco, que trouxe a fotografia mais requintada de todo o festival este ano. “Vivemos tempos de total distração, com a cara enfiada nos celulares. O amor desafia distrações”, disse Pawel, conhecido antes pelo oscarizado drama “Ida”, premiado por Hollywood em 2015. 

Há um júri especial para definir o resultado da Caméra d’Or, láurea dada ao melhor filme de estreia: a cineasta suíça Ursula Meier foi quem julgou a seleção de realizadores recém-chegados. Deles, ela preferiu o belga Lukas Dhont, que fez Cannes chorar com “Girl”, sobre uma menina trans capaz de encarar todos os preconceitos para virar bailarina.

Fora da briga pela Palma, o Brasil viveu um festival de muitas glórias: o longa “Diamantino”, feito em coprodução com Portugal, rendeu a Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt o Grand Prix da Semana da Crítica; a ficção “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, da paulista Reneé Messora e do lisboeta João Salaviza, ganhou o Prêmio Especial do Júri da mostra Un Certain Regard; e o curta “O órfão”, de Carolina Markowicz, recebeu a Queer Palm, prêmio LGBT. 

Ao fim da premiação, Cannes deliciou seus olhos com a direção de arte exuberante da aventura “The man who killed Don Quixote”, de Terry Gilliam, exibido fora de competição. Feito ao longo de 25 anos, de maneira conturbada, com processos judiciais no caminho, este mergulho no universo de Cervantes renova a narrativa de Gilliam, evocando seus tempos de “Brazil, o filme” (1985). 

Terminada a competição de Cannes, a ribalta é do Festival de Veneza, que, este ano, vai de 29 de agosto a 8 de setembro, tendo canadense David Cronenberg, diretor de iguarias como “Gêmeos – Mórbida semelhança” (1988) e “Senhores do crime” (2007), como homenageado pelo conjunto de sua obra.

Os premiados

Palma de Ouro: “Shoplifters”, de Hirokazu Kore-eda Palma de Ouro 

Especial: Jean-Luc Godard, por “Le livre d’image” 

Grand Prix: “BlackKklansman”, por Spike Lee 

Documentário: “Samouni Road”, de Stefano Savona 

Prêmio Especial do Júri: “Capharnaüm”, de Nadine Labaki 

Direção: Pawel Pawlikowski, por “Cold War” 

Atriz: Samal Yesyamova, por “Ayka”

Ator: Marcello Fonte, por “Dogman” 

Roteiro: Alice Rohrwacher, por “Lazzaro felice”, empatado com Nader Saeivar e Jafar Panahi, por “3 Faces” 

Caméra d’Or (?lme de estreia): “Girl”, de Lukas Dhont 

Curta-metragem: “All these creatures”, com menção honrosa para “On the border” 

Prêmio da Crítica: “Burning”, de Lee Chang-Dong 

Prêmio do Júri Ecumênico: “Capharnaüm”, com menção honrosa para “BlackKklansman

O melhor em outras latitudes

“The man who killed Don Quixote”: Valeu cada minutos dos 25 anos que Terry Gilliam gastou na (des)ventura de levar Cervantes às telas. Adam Driver tem uma atuação genial como um Sancho Pança pop; 

“Pope Francis - A man of his word”: Wim Wenders faz um ensaio sobre o lugar da caridade nos dias de hoje a partir dos ideias reformistas do Papa Francisco; 

“Mirai”: Mestre do desenho animado, Mamoru Hosoda usa a fantasia para fazer uma crônica sobre a vida em família, a partir dos sonhos de um garotinho que acaba de ganhar uma irmã;

 “O órfão”, de Carolina Markowicz: Pequeno no tamanho (15 minutos), gigante em sua delicadez, este curta brasileiro retrata questões de gênero a partir de um menino negro que não consegue ser adotado por ter hábitos como usar batom; 

“Wildlife”, de Paul Dano: Carey Mulligan se reinventa como atriz no papel de uma dona de casa que opta por se empoderar e gozar de seus desejos numa casa em crise afetiva dos EUA dos anos 1960; 

“Chris the Swiss”, de Anja Kofmel: Em sua sua estreia na direção, esta cineasta suíca aposta na animação para recriar uma tragédia pessoal: a morte de um primo ligado ao con?ito da extinta Iugoslávia; 

“O Grande Circo Místico”, de Carlos Diegues: O diretor de “Deus é brasileiro” faz 78 anos neste domingo,com a certeza de que encantou Cannes com seu melhor e mais corajoso ?lme desde “Bye Bye, Brasil” (1979). Mariana Ximenes rede?ne sua imagem como atriz no papel de uma trapezista ?el a Deus