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Uma artista sem folga

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Pintora, gravadora, escultora e professora, a carioca Anna Bella Geiger completou 85 anos no último dia 4 de abril. Sem folga, está voando e circulando de um país a outro para prestigiar exposições na Argentina, Estados Unidos e Bélgica, com suas obras. Agora mesmo está em Bruxelas, por conta da coletiva “Circa MMXVIII Human Landscape” (“Panorama humano por volta de 2018”), em cartaz até 26 de junho na Mendes Wood DM, galeria especializada em apresentar trabalhos de artistas brasileiros, sob a curadoria de Carolyn Drake. Já esteve em Buenos Aires, para a individual no Museu de La Universidad Nacional de Tres de Febrero (Muntref), na coletiva “Geografia física y humana”. 

Em Nova York, o ponto alto das homenagens está na mostra “Radical women: Latin American art 1960-1985”, coletiva com trabalhos de 120 artistas mulheres da América Latina no Radical Women-Brooklyn Museum. Também foi apresentada em Nova York “Here is the center”, na Wallach Art Gallery, na Columbia University. “Não programei nada em especial para os 85 anos. As  coisas vão acontecendo”, diz. São 63 anos de carreira, que têm como marcas as inconfundíveis gavetas com cera de abelha como elemento-chave, onde constrói mapas atravessados por elementos e significados. Fotografias também compõem a narrativa visual de suas obras, que tem camadas e mais camadas de produção de pensamento.

Graduada em Línguas Anglo-Germânicas pela Faculdade Nacional de Filosoa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estudou História da Arte e Sociologia da Arte com Hanna Levy Deinhardt, na New York University e na New School for Social Research, nos anos 1950, Anna Bella participou da 1ª Exposição Nacional de Arte Abstrata, em 1952, no Rio de Janeiro. Dez anos depois, venceu o Primeiro Prêmio da Casa de las Americas, em Havana, Cuba. Sua obra representou o Brasil em várias bienais de São Paulo, de Veneza, na Bienalle du Jeune (Paris, 1967), II Biennal (Liverpool), 5éme Biennale Internationale de Photographie (Liège, 2000) e na Trienal Poligráfica de San Juan (Porto Rico) Seus trabalhos integram importantes coleções, como a do MoMA (Nova York), Centre Georges Pompidou (Paris), Tate Modern e Victoria and Albert Museum (Londres), Getty Institute (Los Angeles), The Fogg Collection (Boston).

Anna Bella publicou, com Fernando Cocchiarale, o livro “Abstracionismo geométrico e informal” (Funarte, 1987). Ensina no Higher Institute for Fine Arts (Hisk), em Ghent, Antuérpia, e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), Rio de Janeiro. A trajetória da artista ganha cada vez mais estudos e dissertações mundo afora. “Sinto que aumentou enormemente o interesse de estudiosos da arte sobre a minha obra, acentuadamente no recorte dos anos 1970, 1980 e pela fase atual também. São teses sobre a arte contemporânea latino-americana e brasileira, em que a ênfase recai sobre artistas com atitudes políticas e feministas”, destaca. 

No Brasil, o Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói, oferece olhares sobre a produção da artista, junto às obras de Lygia Clark, Mira Schendel e Wanda Pimentel. A exposição vai até 4 de novembro. Em São Paulo, na Caixa Cultural, está em cartaz até 13 de maio a exposição “Gaveta de memórias”. Na série criada especialmente para este tema, Anna Bella recorre à cartografia para refletir sobre o mundo. A gaveta, suporte recorrente, exibe os diversos mapas criados com cera. A curadora independente Daniella Géo analisa a obra da artista em artigo exclusivo produzido para o “Jornal do Brasil”.

Os vários marcos de Anna Bella Geiger

Quando falamos sobre um artista com mais de 60 anos de trajetória, inevitavelmente recaímos em sua contextualização histórica por meio de suas realizações. Sobretudo, em se tratando de alguém que navegou do moderno ao pós-moderno, promoveu rupturas, sempre privilegiando a experimentação e a postura crítica, e é considerada uma referência na arte brasileira, como é o caso de Anna Bella Geiger.

Seus marcos são vários, tanto na prática artística quanto no ensino e na produção de discursos sobre a arte, e mesmo em iniciativas de outras ordens. A começar por sua participação, em 1953, da I Exposição Nacional de Arte Abstrata, passando pelo pioneirismo na videoarte e a exposição sinestética “Circumambulatio”, resultante de experimento coletivo de um dos cursos que deu, entre 1968 e 1973, no MAM-RJ. Ou a sua participação no boicote à Bienal de São Paulo por mais de uma década do regime militar, e sua atuação como membro-fundadora, em 1987, da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap).

Mas Anna Bella está mais interessada no presente e no porvir. Seu desejo permanente de conhecimento, de troca e de produzir requer a energia dos 20 anos de idade. Na sala de casa, há habitualmente obras selecionadas para novas exposições e montanhas de livros pelas mesas. Seus cursos na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, realizados há anos com o curador Fernando Cocchiarale, não têm hora para terminar. Sua obra é informada por uma diversidade de campos, da antropologia à psicanálise, da literatura à história e à geopolítica. E não lhe falta tempo para visitar exposições, ir ao cinema e a concertos, e receber os amigos em casa.

Em menos de dois meses, inaugurou individuais no Muntref, em Buenos Aires, e na Wallach Art Gallery, Columbia University, em Nova York, além de fazer curadoria, junto com Cocchiarale, para a galeria A Gentil Carioca; de participar de coletivas no MAC de Niterói e no Brooklyn Museum, em Nova York; e de voltar mais uma vez à Big Apple para visitar a família. Agora, está aqui na Bélgica, para sua primeira individual na galeria Mendes Wood de Bruxelas. E a viagem transatlântica parece ter efeito de ponte aérea; não há fuso horário que diminua seu ritmo. Há praticamente um sentido de urgência em seu estar no mundo. Não simplesmente pela avidez de viver e de experimentar, mas também por uma necessidade de conquista. Anna Bella sabe que pode e tem muito a contribuir para a construção de “outras” histórias da arte. Incontornável no Brasil, a artista participou de diversas coletivas internacionais, representando o país e a América Latina. Mais recentemente, em tempos de revisionismo histórico, releituras feministas e tentativas de descolonização da arte, ela volta a ganhar individuais fora de casa e gura cada vez mais em curadorias alheias a regionalismos. A renovação de seu reconhecimento como artista singular e relevante para além daquele viés é a maior certicação que poderia receber em seu aniversário de 85 anos, celebrados com trabalho e resistência contínuos este mês. 

* Curadora e pesquisadora. Doutora em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III.