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‘Nossa democracia é mentirosa’

Mujica participa de documentário que aborda situações sociais extremas em três continentes

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José Mujica é o ponto de partida para a viagem que o documentário “Frágil equilíbrio” faz por três lugares culturalmente diferentes, mas com feridas sociais igualmente difíceis de cicatrizar. Através de suas ideias e opiniões profundamente humanistas, vai costurando a história de personagens em  situações extremas no Japão, na Espanha e no Marrocos. São executivos depressivos que trabalham à exaustão, desempregados que são despejados de suas casas e refugiados que vivem num acampamento e arriscam suas vidas tentando entrar em território europeu. 

Imigração, crise econômica, consumismo, sobrevivência, alienação, identidade, liberdade, solidão, amor, ódio, solidariedade e morte. Mujica, mesmo em breves frases, consegue elucidar cada um desses temas, que vão se articulando às histórias que, à primeira vista, nada têm a ver com as ideias daquele sábio velhinho, mas que se encaixam como luva em cada situação abordada no filme dirigido pelo espanhol Guillermo García López. 

“Temos conhecimento e meios, mas não temos direção (...) se o mercado continuar nos governando, vamos sucumbir. O consumismo é uma escravidão”, critica Mujica. O comentário traduz bem a angústia de dois executivos em Tóquio que trabalham sem parar, compram de tudo sem se importarem com o valor e chegam à conclusão de que não são felizes, como diz um dos personagens: “Levanto às 5h e vou dormir às 3h. Comprei um carro no ano passado, mas não fui a nenhum lugar distante”, diz um dos personagens, que comenta sobre o suicídio de um colega que andava deprimido por causa da pesada carga horária de trabalho. 

Da sociedade rica e desenvolvida, o filme vai para um campo miserável de refugiados no Monte Gurugú, perto da fronteira entre a África e Melilha. “Não há nada revolucionário para quem tem três refeições por dia. Mas para quem come dia sim, dia não, isso pode ser uma meta gloriosa”, diz Mujica. Na cena seguinte, uma sopa com ingredientes indefinidos é dividida entre homens esfarrapados que conversam sobre sua situação.

“Ninguém merece morar no mato e comer coisas podres. Por que gastar dinheiro construindo uma cerca mais reforçada? Porque não nos dão empregos?”, indaga um deles, referindo-se à cerca fortemente vigiada que os impede de entrar na ilha espanhola. Um dos truques para driblar a polícia é colocar parafusos nas solas dos tênis para escalar mais facilmente. Os poucos que conseguem, pulam, gritam de felicidade e beijam o solo. “A Europa vai acabar mulata. É questão de tempo”, prevê o uruguaio. 

“O homem é um predador e nossa democracia é mentirosa”, afirma Mujica, enquanto a câmera segue para prédios populares em Madri, onde famílias inteiras, vítimas da crise econômica, são violentamente despejadas pela polícia. Um dos personagens, inclusive, passa a viver dentro do próprio carro. 

Premiado e sem distribuição 

“Frágil equilíbrio” já ganhou prêmios de Melhor Documentário Espanhol no Festival Seminci (Semana do Cinema de Valladolid) e o Goya de Melhor Documentário da Academia de Cinema da Espanha em 2016. “O Goya foi uma alegria e uma surpresa. Todos os prêmios em outros países, como Itália, Portugal e Estados Unidos, assim como os convites de exibição, têm um importância muito grande, porque nos lembram que não importa a origem, o país e espectadores. As pessoas se conectam com a mensagem universal do documentário”, diz o produtor Pablo Godoy-Estel.

Mesmo com tantos prêmios importantes e o impacto que causa onde é exibido, o documentário não tem despertado o interesse das distribuidoras. “São as dificuldades comuns para os produtores e criadores independentes”, diz Godoy-Estel. Se, na Espanha e no Uruguai, o filme circulou por festivais e foi exibido nas salas de cinema, ainda há negociações em outros países, como no Brasil. “Considerando as dimensões do país - quase um continente! - achamos que o jeito de alcançar mais pessoas seria através da plataforma digital ‘Vimeo on demand’. Dessa forma, pode-se alugar o documentário por menos do valor de um ingresso no cinema (U$ 4). 

Mesmo assim, não fechamos as portas a uma possível distribuição em salas e a um circuito educativo e cultural”, avisa o produtor. O ex-presidente uruguaio José Mujica demorou seis meses para aceitar participar do projeto de “Frágil equilíbrio”, que, desde o início, tinha o objetivo de costurar os depoimentos dele com situações de outras partes do mundo. “A ideia era passar essa sensação global de que as coisas abordadas no filme atingem todos, independentemente da localização geográfica”, confirma Godoy-Estel. 

Sobre a participação de Mujica, ele conta: “Na época, ele era presidente de Uruguai, o que já não o deixava com muito tempo. Além disso, havia uma longa lista de espera de entrevistas de veículos de comunicação do mundo todo. Mas foi uma das duas únicas entrevistas que ele deu aquele ano (junho de 2014) para projetos cinematográficos e tudo fluiu naturalmente”. O título do filme foi pinçado de uma das frases de Mujica: “O mundo é uma coisa frágil e bela, navegando no meio da solidão do Universo, do silêncio mineral, das leis da Física”.

Quebra-cabeça 

Quanto às filmagens, o produtor lembra que, por ser uma produção independente, acabou recorrendo a amigos em diferentes partes do mundo, orientando-os sobre que tipo de imagens e depoimentos estavam procurando. “Demos ideias gerais das imagens que procurávamos e eles tiveram liberdade criativa e, mesmo assim, tudo deu certinho”, conta. A edição foi um quebra-cabeça, onde, com as três histórias e as falas de Mujica, formaram-se “peças” que se encaixaram com perfeição. “Foi um processo longo porque as histórias eram muito complexas e o discurso de Mujica idem. Então, tínhamos que ter o cuidado para que tudo entrasse num formato que não chegasse a três ou quatro horas de duração”, explica o produtor.

A abordagem de temas tão tristes e pesados não faz de “Frágil equilíbrio” um documentário pessimista. “Percebemos que, tanto a mensagem de Mujica como as histórias, tinham muita esperança e otimismo frente à miséria e aos desafios de cada um. Então, quisemos transmitir isso: uma esperança de que, mesmo que às vezes a vida seja dura, sempre se pode acreditar em um amanhã melhor”, conta Godoy-Estel. “O amor é criador”, confirma, carinhosamente, Mujica.