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Entre duas culturas: Julia Mann, a brasileira indomável

Documentário sobre a mãe de Thomas e Heinrich será exibido sexta-feira na UFF e na Gávea

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Julia Bruhns Mann, a mãe de Thomas Mann e Heinrich Mann, escritores alemães consagrados, nasceu em Paraty em 1851. Seu pai era o comerciante alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns, proprietário de fazendas de café e cana de açúcar, que se estendiam de Santos ao Rio de Janeiro. Maria da Silva, a mãe, bela morena moradora da Ilha Grande, era descendente de portugueses e indígenas.

Com 28 anos, a progenitora morre. Julia, que tinha uma irmã e três irmãos, estava com apenas cinco anos. Quando ela estava com sete, o pai viúvo decide que as filhas deveriam ir para a Alemanha, passando a viver num pensionato. O que foi muito doloroso para as meninas, que, na ocasião, tiveram que se afastar da babá Ana.

Com 14 anos, ela sai do colégio interno e vai viver na casa de parentes do pai em Lübeck, na ocasião uma cidade-estado. Em 1869, com 17 para 18 anos, casa-se com o cônsul e senador Thomas Johann Heinrich Mann, eminente representante da burguesia local de 29 anos. Do casamento, nasceram cinco filhos: os já citados Thomas (ganhador do Prêmio Nobel com seu livro “Os Buddenbrook”) e Heinrich, além de Julia, Carla e Viktor.

Quando o marido morre, Julia Mann, que se sentia engessada pelos rígidos costumes lubeckianos e amava música, dançar e escrever, vai morar com os filhos em Munique, abrindo os salões para os artistas. Ainda bela e jovem, queria flertar. Sua alma era de brasileira. Colocava galhos de árvore em arranjos nos cabelos.

Os filhos se constrangem. É essa dualidade da personalidade da mulher criada com toda a liberdade em Paraty que o documentário “Entre duas culturas: Julia Mann”, que teve como roteirista o suíço Peter K. Wehrli e como produtor o também suíço Peter Spoerri, tenta mostrar em 50 minutos. Ele foi exibido no último sábado à noite no Sesc Paraty. 

Já passou por Brasília e, na próxima sexta, dia 27 de abril, será exibido no Instituto de Letras da UFF (Bloco C, Auditório 218. Gragoatá, Niterói), às 10 h e às 14h, e no Clube Sociedade Germânia, às 19h (Rua Antenor Rangel, 210, Gávea). A recepção na Alemanha, na Suíça e no Brasil, informa Peter K. Wehrli, que estará presente na UFF e no Clube Sociedade Germânia, foi muito boa. E não poderia deixar de ser, já que a mãe de Thomas (autor de “A montanha mágica” e do “Doutor Fausto”, além de outras obras-primas) e de Heinrich (autor de “O súdito” e de “O anjo azul”), é uma personalidade fascinante. Abaixo, algumas perguntas para o roteirista de “Entre duas culturas: Julia Mann “.

Jornal do Brasil - Quanto tempo levou para o roteiro e o documentário “Entre duas culturas: Julia Mann” ficarem prontos?

Peter K. Wehrli – Uns três anos e meio. Tudo começou em 1997, quando Frido Mann (o neto de Thomas, filho de Michael, o mais novo dos seis filhos do escritor com a esposa Katia Pringsheim Mann) esteve aqui no Brasil e decidiu iniciar uma pesquisa sobre sua bisavó, já pensando num documentário. Eu estava com ele. Neste ano, foi lançado pela Estação Liberdade e pelo Instituto Goethe o livro “Julia Mann, uma vida entre duas culturas”, que continha 132 ilustrações e seis artigos, com destaque para o de Frido, o do escritor chileno Antônio Skarmeta e o do brasileiro João Silvério Trevisan, autor de “Ana em Veneza”. Vocês filmaram a casa que foi do pai de Julia em Paraty e na qual ela passou a infância com os irmãos, aquela casa de Amyr Klink que fica encravada na montanha e dá para o mar? 

Ela descreve com muitas saudades e carinho a infância passada no Brasil no livro “Aus Dodos Kindheit” (“Da infância de Dodo”). Menciona Paraty e também a Ilha Grande. De acordo com Frido, a família achava que na casa existia um maldição...quem sabe esta maldição fosse a brasilidade... Frido me falou sobre essa maldição. Havia muitas intrigas a respeito de quem era o dono da casa do senhor Bruhns à beira do mar. Ninguém sabia na realidade quem era o proprietário. Levanta-se a hipótese de ser um banco. Felizmente o navegador Amyr Klink, que a alugava, acabou por comprá-la num leilão. Ele mesmo organizou este leilão e a arrematou. Não foi um feito mágico. Eu não acredito em maldições. O documentário tem filmagens dentro da casa. Pedimos licença a Klink para fazê-las. O filme começa com a visão da casa. Mas tem outra coisa que eu gostaria de destacar...o principal motivo que me levou a fazer o documentário...

Qual foi este motivo?

Esmeralda. A borboleta chamada Esmeralda. Sempre busquei uma chave para figura de Julia na ação do filme. Esta chave ou fio condutor é a borboleta Esmeralda. Thomas Mann homenageia Julia escrevendo sobre uma borboleta cujo simples bater de asas muda o mundo. Este é o símbolo para a apresentação da mãe não só na obra de Thomas, mas também na de Heinrich e na de Klaus, o filho de Thomas que também era escritor. João Silvério Trevisan também menciona a borboleta em seu livro, paragonando-a com Julia.

Mas não podemos esquecer que a borboleta Esmeralda, além de significar Brasil, Amazônia, a Floresta da Serra do Mar, tem outro sentido. Era uma prostituta. Ela é a personagem em “Doutor Fausto” que passou sífilis para o protagonista, o músico Adrian Leverkuhn, quando se relaciona com ele num bordel. Diria que Julia era para os filhos não apenas uma mulher diferente, exótica, mas também uma mulher selvagem, sensual, indomável? Na Alemanha, havia muitas regras e leis. Heinrich dizia que a mãe não fora feliz em Lübeck. Os costumes burgueses eram para ser cumpridos, o que foi muito duro para Julia enquanto viveu com o senador Thomas Heinrich Mann. Mas, em Munique, tudo mudou. Quando o marido morreu e ela foi morar lá com os filhos, abriu os salões. Colocou até galhos de árvores nos cabelos. Há fotos deste penteado. Ela ficou mais livre. E provavelmente mais feliz. É verdade. Em Munique, ela fez parte da boêmia. Vivia num meio mais artístico, menos burguês. 

Acha que a própria Julia era uma artista? Tinha veia ou alma de artista?

Julia escreveu o livro sobe a infância no Brasil, mas há quem considere que não tem valor artístico, ou seja, que ela não foi uma grande escritora, apesar de ter redigido outros textos. Alguns esboços. Mas ela amava a música também. Tocava instrumentos, cantava. Falou português e cantarolou quando estava morrendo...

A música foi o que os filhos consideraram a grande herança da mãe. Mas volto à borboleta Esmeralda. E às várias aparições de Julia na obra dos filhos. A borboleta está no “Doutor Fausto’ de Thomas, que também se inspirou na mãe para criar várias protagonistas ou personagens femininas, como Gerda (Os “Buddenbrook”), a Sra. Rodde (“Doutor Fausto”), Claudia Chawchat (“A montanhas mágica”), a mãe de Gustav von Anchenbach (“Morte em Veneza”), a mãe de “Tonio Kroeger”. Já no caso de Heinrich, há um livro muito importante, “Entre as raças”, no qual ele nos dá uma imagem definitiva de Julia. Neste livro ele descreve o caráter, a essência da mãe. Mencionamos muito este romance no documentário.

Além de filmar em Paraty, você filmaram em Lübeck e em Munique?

Impossível. Um documentário só tem 50 minutos para usar palavras e imagens sem que se sobreponham, fiquem redundantes. Filmamos em Paraty e em Lübeck. Munique é mencionada apenas nos comentários. Não poderíamos estourar o tempo das filmagens. 

Os habitantes de Lübeck brigaram com Thomas por causa de “Os Buddenbrook”, mas foi com este livro que ele ganhou o Prêmio Nobel, não com “A montanha mágica”. 

Sim, os habitantes da cidade ficaram ofendidos por terem sido retratados no livro de uma forma quase que natural. Não entenderam que Thomas Mann era um artista e não um comerciante, ou seja, ele não era igual à família burguesa do senador. Como um artista, preocupava-se com o estético. O livro foi importante para ele e anos mais tarde a cidade de Lübeck o perdoou. 

O que achou da série “Os Mann”, que passou na TV alemã?

Achei que forçaram muito na figura de Klaus Mann, até porque gosto muito de Klaus, compadecendo-me de toda a sua trágica história. Frido não ficou nada contente com esta série. Ele considerou que o diretor se esqueceu de que Klaus Mann (filho de Thomas) era um escritor. O filme só o mostra como um homossexual e drogado e ele era um artista, um ser literário, autor de livros importantes, como “Mefisto” e “Der Wendepunkt” (“A virada” - Não existe traduzido para o português). Klaus tinha a veia literária da família, o mesmo acontecendo com sua irmã Erika (Envolveram com várias atividades. Erika criou na Alemanha o cabaré ‘O moinho de pimenta” e Klaus foi editor, no exílio, da revista “Querido”). 

Em suas singelas memórias sobre a infância, Julia menciona o carnaval que passou na Ilha Grande, as laranjinhas que jogava nas outras crianças, os folguedos com os filhos de escravos. Vocês filmaram na Ilha Grande?

Não. Terminamos o documentário com cenas da Festa do Divino em Paraty justamente para lembrar um pouco esta menção dela ao carnaval. 

Quais foram as pessoas ouvidas no documentário? 

O jornalista e historiador Diuner Mello; o escritor João Silvério Trevisan; Johannes Kretschimer (UFF); o pesquisador suíço Martin R. Dean e Paulo Soethe (UFPR).

* Jornalista e escritora