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À beira de um ataque de encanto

Prestes a completar 50 anos de cinema, Carmen Maura estrela ‘Veneza’, de Miguel Falabella

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Sai de baixo, concorrência do cinema nacional, que Carmen Maura vem aí... A mais aclamada atriz espanhola, musa de Pedro Almodóvar, é a protagonista de “Veneza”, longa filmado por Miguel Falabella. Há dez anos, ele fez “Polaroides urbanas” e voltou para a rotina de sucesso no teatro e na TV. Mas preservou no peito uma inquietação: uma peça do argentino Jorge Accame, batizada com o nome da “Terra das gôndolas”, que encenou no Rio com Laura Cardoso, em 2003, tinha um potencial cinematográfico. A chance de ter uma protagonista de fama internacional do porte da estrela de “Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988) viabilizou o projeto, de cerca de R$ 8 milhões, produzido por Julio Uchôa (o mesmo do multinacional “Soundtrack”) com distribuição assegurada pela Imagem Filmes. As filmagens terminaram anteontem na Itália. As locações escolhidas como set: Montevidéu e a cidadezinha italiana que dá nome ao longa. “Sou uma mulher de muita imaginação e, aqui, com Miguel, encontro um fabulador que sabe o poder da fantasia que o continente latino tem”, diz Carmen. 

Na trama derivada da peça de Accame, repaginada por Falabella, Gringa sonha acertar as contas (leia-se reatar uma velha paixão) com o único homem que a amou de verdade, Giácomo (Magno Bandarz). Mas ela acabou roubando o sujeito. O dinheiro do roubo bancou seu bordel... e anos de culpa. Agora, mais velha e cega, sonha voltar e ser feliz. Suas meninas... suas garotas de programa (Dira Paes, Carol Castro, Maria Eduarda de Carvalho, Danielle Winitis, Carolina Virguez)... vão ajudá-la. E elas vão contar com o apoio de um cliente fiel (quase sócio) do prostíbulo, Tonho, papel de Eduardo Moscovis.    

“Este filme tem na travessia para Veneza uma metáfora de sonho, felliniana, que carrega um pouco de cada mestre do cinema querido por mim: tem ‘Amarcord’; tem ‘O conformista’, do Bertolucci; tem Tim Burton; tem até Tarantino. E é uma viagem carregada de nossa latinidade. A América Latina vive uma série de contradições, mas preserva uma magia, em seu imaginário fantástico que nosso cinema precisa enc0arar”, diz Falabella, que contou com o aclamado fotógrafo Gustavo Hadba (de Motorrad) como seu pilar na construção da imagem, ao lado do diretor de arte Tulé Peak e da figurinista Bia Salgado. 

Mas Carmen é seu trunfo: “Ela é de uma generosidade rara: tá sempre pronta, sempre atenta aos colegas, elogiando a Dira, a Dani e as outras”, diz Miguel, que mandou o roteiro para ela numa quinta, por intermédio de um agente que conhecia, e recebeu o “sim” na segunda seguinte. No set uruguaio de “Veneza”, Carmen viaja no tempo, revendo os dias de estreante.

Seu primeiro filme, “El espíritu”, foi feito em 1969 e, de lá pra cá, a senhora nunca saiu da telona. O que ainda existe de desafiador no cinema depois de tantos anos? 

Quando tinha uns 20 e poucos anos, trabalhava como galerista, dividindo meu tempo entre a galeria e meus compromissos como mãe. Aí fui a um evento no Ateneu de Madri e acabei participando de uma leitura. Havia um crítico bastante famoso e temido lá, Alfredo Marquerie, que me viu e me procurou pra dizer que eu tinha talento. Ele sugeriu que eu me dedicasse integralmente a atuar. Saí dali mordida e acabei me matriculando no Teatro Universitário, para desgosto do meu marido, que não gostou da minha escolha. Meus pais gostaram menos ainda. Quando me profissionalizei, passei a ser tratada nas festas de família como uma pessoa doente. Para o meu pai, saber que tinha uma filha atriz era o mesmo que ter uma filha com uma doença terminal. Eu tinha 25 anos quando passei por isso tudo, mas segurei o rojão, pelo encanto que era trocar coletivamente com aquele povo maluco que atuava no teatro ou no cinema da Espanha nos anos 1960. Era uma liberdade, uma vida... Aí veio Pedro Almodóvar, trazendo mais loucura ainda. Como é que posso não gostar de fazer cinema?

E hoje, aos 72 anos, seu gosto pela loucura dos sets é o mesmo? 

Não é só a loucura. É questão técnica. Os refletores, as câmeras, as equipes trabalhando juntas. Isso me fascina até hoje. É uma arte única essa em que um grito, “Ação!”, põe um bando de gente de perfil e de conhecimento bem diferente toda unida, a depositar sua alma na ideia de um diretor. É por isso que, ao pisar num set, entro em cena com respeito absurdo pelo cineasta que nos comanda. É esse cara que congregou o povo todo em nome de uma história a ser contada. Uns têm mais experiência do que outra. Miguel Falabella, por exemplo, tem um nível de conhecimento do teatro, da profissão do ator e da história do cinema que me faz reverenciá-lo. Gustavo Hadba, nosso fotógrafo, é também um artista com domínio pleno do que a imagem pode fazer. Torço muito para que este nosso filme tenha uma carreira internacional de peso, pois essa turma merece ser conhecida lá fora.   

O que a história de Gringa, cafetina cega que sonha um dia voltar à Itália para reaver seu amor perdido, ensinou a você sobre o imaginário fantástico da América Latina? CM: Antes de tudo, este filme me ensinou como falar de um jeito cantado, como vocês fazem no Brasil, falando de um jeito melódico. Percebi isso vendo telenovelas de vocês para tentar mimetizar o modo de dizer as palavras. É muito bonitinho esse modo de falar de vocês, em português... coisa que na Espanha a gente não tem. Nosso falar é mais circunflexo, forte. O de vocês tem toda uma ligação com a música. Mas, em relação à fantasia: fiquei toda encantada quando fui mergulhando no universo de Gringa e vendo como Miguel traz toda uma tradição fabular para o filme, com mistério, cores fortes, referências a circo. Queria filmar mais aqui, porém há a questão da distância.

Mas a senhora já filmou na Europa toda. Qual é a questão de filmar por aqui? 

Uma coisa é encarar duas horas de avião pra chegar em Paris e rodar um filme francês. Outra coisa é ficar dez horas num avião pra rodar um longa no Uruguai, falando em português. Mas vale a pena. Fiz um filme colombiano há alguns anos, “Sofía y el terco”, um dos trabalhos mais emocionantes dos últimos anos.  

Como a senhora está vendo as transformações políticas da Europa hoje? Ainda tem prazer em viver na Espanha? 

Não troco Madri por nada, embora esteja muito cabreira com a relação dos espanhóis do centro com os catalães. Madri é quente, o que me deixou bastante à vontade ao chegar na América Latina: calor não falta lá. O único outro lugar da Europa onde eu moraria, se pudesse escolher, seria o Sul da França, um território de campos verdinhos, vacas limpinhas, sol brando. Aquilo é um paraíso. Mas eu nunca moraria nos Estados Unidos. Gosto de toda a cultura que a Europa cultiva, mesmo estando ciente de que temos muitas contradições por aqui.  

O cinema espanhol ainda a encanta?

Como é que posso não ficar encantada, ao ver uns garotinhos que poderiam ser meus netos filmando histórias contemporâneas e me chamando para trabalhar, encarando-me como parceira e não como diva? Eu não sou uma pessoa que se enxerga como grande atriz, como diva. Atuo de modo intuitivo. Quando era criança e pegava uma boneca, inventava mil histórias para poder ser a mãe daquele brinquedo. Atuo dese jeito, como a menina que brincava de boneca. A Espanha demorou a se firmar nas telas. Quando comecei a frequentar festivais como o de Cannes, o cinema espanhol era encarado como um bicho esquisito: uns achavam que a gente era português, outros achavam que éramos de alguma colônia africana. Aí veio Carlos Saura, com “Cría cuervos” e outras joias, e mudou tudo. Saura virou um deus e abriu as portas do mundo pra gente. Hoje em dia, ninguém fala mais de Saura. Fala-se de Pedro e de alguns outros. Mas estamos aí...  

Falando de Pedro, de Almodóvar, há uma mostra sobre ele, com os filmes que vocês fizeram juntos, começando no dia 8 de maio no Ceará, na Caixa Cultural de lá. O que Pedro significou pra você em sua formação? 

Pedro estava envolvido com uma montagem de um texto de Sartre, “As mãos sujas”, quando o conheci, ainda jovenzinho. Aliás, éramos jovens... ele tem só uns quatro anos a menos do que eu. Comecei a andar com a turma dele, que queria fazer uns curtas-metragens. Um dia, ele cismou que um dos curtas que ia rodar rendia mais: era o roteiro de “Pepi, Luci, Bom e Outras garotas de montão”. Só que a gente mal tinha dinheiro para fazer um curta, quanto mais um longa. Trabalhávamos duro para arrumar o cascalho. Quando arrumava alguma grana, Pedro fazia novas cenas, usando câmeras e figurinos emprestados. A maquiagem era a gente que fazia. Ficamos dois anos naquela loucura. Mas aquela maluquice acabou sendo o meu curso de cinema. Um curso sobre como filmar numa época careta.  

Depois dessa experiência com Falabella, deu vontade de conhecer mais o cinema brasileiro?

Claro. Eu só lembro de “Cidade de Deus”. A questão é o cinema de vocês chegar até nós. Os franceses são especialistas em levar filmes estrangeiros para a Europa, mas custam a investir em certas cinematografias. Falo por Pedro: eu tinha feito uma série de filmes com ele quando a França resolveu prestar atenção na gente. Em Cannes, só nos deram bola depois do sucesso de “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. E isso foi há 30 anos. Cinema não é uma brincadeira fácil. Tem que ter um anjo da guarda forte.

 * Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)