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Premiado longa de estreia de João Dumans e Affonso Uchoa aborda a precariedade do trabalho

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Longa-metragem de estreia da dupla João Dumans e Affonso Uchoa, “Arábia” teve uma carreira consagrada em festivais nacionais e internacionais – ganhou como melhor filme, melhor ator, melhor trilha sonora e melhor montagem no Festival de Brasília do ano passado, além de prêmios no Peru, Argentina, México e Equador, antes de entrar em circuito na última quinta-feira. Os diretores, que haviam trabalhado juntos em “A vizinhança do tigre” (Affonso dirigindo e João como roteirista), contam a história de um homem que sobrevive alternando trabalhos de condições desumanas com longos períodos pela estrada. Classificar “Arábia” como um road-movie ou um drama é reduzir o alcance do trabalho dos cineastas mineiros. A começar pelo elenco, praticamente de atores amadores. A escalação de Aristides de Sousa como o protagonista Cristiano foi, no mínimo, não tradicional. 

“Affonso conheceu Aristides em 2006, quando estava começando as pesquisas para o documentário ‘A vizinhança do tigre’ na cidade de Contagem. Ele apareceu num dia em que algumas filmagens já estavam sendo feitas, perguntou o que era aquilo e como fazia para participar. No dia seguinte, foi escalado para substituir um rapaz que havia faltado e acabou se tornando um dos principais personagens do filme. Foi quando descobrimos como ele é talentoso e inteligente”, conta João.  

Se o longa não é autobiográfico, é bastante parecido com a vida difícil de Aristides que, como Cristiano, foi preso e sempre sobreviveu de bicos ou empregos mal remunerados. O ator já foi vendedor de picolé, entregador de cesta básica, ajudante de pedreiro e guardador de carros. Seu personagem trabalha numa plantação de mexerica, na construção de uma rodovia e numa fábrica de tecidos, descarrega mercadorias, faz pequenas obras e, por fim, vira metalúrgico em condições insalubres de uma usina. “’Arábia’ surgiu do nosso desejo de fazer um projeto ficcional e, ao mesmo tempo, do desafio de construir um personagem para o Aristides. Não tem nada a ver com a trajetória de vida dele, nem na parte em que vai para a cadeia, afinal, a prisão é algo comum para os jovens da periferia brasileira. Tínhamos convicção de que criaríamos um personagem forte”, afirma o diretor.

Sem linearidade 

O processo de produção e filmagem durou três anos (2013 a 2016) e o resultado foi um filme não-linear, fora dos padrões no roteiro e na fotografia. A história tem uma “pegadinha”, que leva o espectador a crer que está assistindo à história de dois irmãos mas, passados 30 minutos, se surpreende com um novo começo. É quando o menino encontra o diário de Cristiano, que passa a ser o personagem central e o narrador da história.

 “Nas primeiras filmagens, fizemos quase todo o prólogo. A convivência na Vila Operária nos  levou a dar uma dimensão épica à história de Cristiano, como se ela engolisse a primeira parte. Mas a ideia é fazer com que, mesmo sendo dispensado na tela, o menino permaneça ali, como um fantasma. Queremos colocar o espectador na posição de alguém que cai num buraco sem fundo”, compara. 

A fotografia e os enquadramentos são outros elementos de destaque em “Arábia”, que escapam do realismo e decupagem tradicionais em filmes com temática semelhante. “Leonardo Feliciano é um dos maiores fotógrafos brasileiros, tem uma sensibilidade incrível. Como eu e Affonso não somos formados em escolas de cinema (eles são jornalistas e foram programadores do tradicional Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte), ele nos ajudou a chegar a outro patamar com seu trabalho”, elogia o diretor, explicando que a primeira parte do filme tem uma fotografia mais desenhada, enquanto a segunda valoriza a luz natural. 

Sobre a opção de planos e enquadramentos, João conta que a ideia era dar um tom teatral, como se os atores estivessem num palco, ao longe. “Queremos que o espectador perceba os espaços e os cortes que estão ali dentro, como nas cenas do galpão de mexericas ou da mercearia. O cinema brasileiro explora muito o sentimentalismo do ator, nós optamos por encontrar a emoção de outra maneira. Quando a câmera se aproxima, em determinados momentos, é porque se trata de algo realmente intenso”, explica. 

O filme carrega uma forte carga social, ao abordar a precarização do trabalho, não só pela peregrinação de Cristiano, mas também através do personagem Barreto, um ativista político que “conheceu até o Lula” e, em certo momento do filme, diz: “A terra é a mesma, mas está tudo esquisito”. A frase soa como uma profecia, uma vez que muita coisa mudou no país desde o começo das filmagens. “A situação ainda não estava desse jeito e, inocentemente, achávamos que estávamos fazendo uma forte crítica, dando pistas para pensar que processos são esses. Hoje, o filme ganha outra dimensão crítica. Não se trata mais de discutir as opções, agora estamos diante do abismo”, define. 

Para João, o filme deixa interpretações em aberto, principalmente quando Cristiano desabafa, exausto e infeliz, que “nossa vida é um engano”, mas que percebe que “está vivo e respirando”. “É um final que fala sobre desagregação e solidão, mas também afirma que é preciso parar para pensar no que estamos fazendo da vida e superar os problemas. Com isso, já ouvi pessoas dizendo que o filme é otimista e outras achando pessimista”. Ele, por sua vez,  não anda nada esperançoso com a situação atual do Brasil. “Minha sensação é de que estamos no final de um ciclo e que vamos caminhar para um país pior e com mais pobreza. Precisamos ficar vigilantes para não voltarmos para o século 18”, opina.