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Villa Aymoré: um recorte da história do Rio de Janeiro

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A historiadora carioca Renata Santos lamenta a demolição da Vila Operária Pereira Passos, na Rua do Catete (onde hoje existe o Ciep Tancredo Neves), para as obras do Metrô na década de 1970. Pouca gente se lembra do estilo arquitetônico, do desespero das pessoas, removidas quase do mesmo jeito que as toneladas de entulho; tudo se apagou da  paisagem e da vida da cidade. Renata também não lembrava, sequer viveu a época. Mas tem nítido na memória este e muitos outros fatos praticamente escavados para compor “Villa Aymoré - Cidade, patrimônio e desenvolvimento” (Ed. Casa da Palavra, 224 páginas, R$ 80), que acaba de chegar às livrarias. A publicação, na falta de termo melhor, inventaria o contexto em que são construídas pelo empresário do ramo têxtil Antônio Mendes Campos as dez casas que formam a Villa Aymoré, na Ladeira da Glória, partindo daí para fornecer uma perspectiva histórica da cidade, dando ênfase às diferentes formas de morar no Rio. Para isso, cruza saberes distintos, documentando com saborosas curiosidades e ilustrações um pouco da cidade - ainda mais agora - tão potente purgatório da beleza e do caos.

Deslocamento dos mais ricos no século XIX

O destino da Villa Aymoré poderia ter sido o da Vila Operária. Não foi. Antes, pelo contrário. De estilo eclético, é considerada hoje uma joia da arquitetura da cidade, tombada como patrimônio cultural pelo município, parte da Área de Proteção do Ambiente Cultural (Apac) Espaço da República. No prefácio, a doutora em Sociologia Lucia Lippi Oliveira, destaca: “as vilas de um modo geral pertencem a uma sequência de tipos da história da habitação popular na cidade - as estalagens, os cortiços, as casas de cômodo e as vilas, muitas delas voltadas para a população operária. 

Este não é o caso da Villa Aymoré, que se distingue dessa classificação. (...) Confirmando sua distinção, ficamos sabendo que, junto à Villa Aymoré na Ladeira da Glória foi construída a Villa Venturoza, em estilo ‘art déco’ e que serviu de residência aos dois filhos de Antônio Mendes Campos, e é onde se encontram vitrais agora valorizados e que aludem à história da família desde os tempos humildes ainda em Portugal”. Três gerações da família se beneficiaram com os lucros oferecidos pela Aymoré, até ser repassada para a empresa Landmark Properties, no século XXI. 

Diante da configuração atual das regiões, chama ainda mais a atenção saber que, “em meados do século XIX, houve um deslocamento dos mais ricos em direção à Lapa, Glória, Catete e Botafogo, assim como para Tijuca, Estácio e Catumbi, além de Santa Teresa e São Cristóvão”, descreve Lucia Lippi Oliveira. Esta análise é o fio condutor sobre a estrutura da pesquisa de Renata. “O livro tem dois eixos: tenta entender o contexto em que foi construída a Villa Aymoré e o contexto em que foi recuperada. A partir da produção do conhecimento é que as pessoas podem entender a importância do patrimônio e, assim, se apropriarem disso, no sentido de defender a história da cidade”, afirma. 

Entre 2012 e 2016, ela foi responsável pela disciplina de Políticas Públicas de Preservação do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Considero que o trabalho aqui apresentado sobre as questões que envolvem a Villa Aymoré é, de certa forma, fruto do aprendizado e das reflexões desenvolvidas ao longo desse últimos anos envolvida com a instituição”. 

Este pode ser o primeiro estudo específico sobre a história da Villa Aymoré. Nem mesmo no processo de tombamento houve um. “Também não identificamos trabalhos que busquem compreender sua aquisição e restauração no âmbito de uma política pública de preservação do patrimônio”, observa Renata. Tema que sempre representa curiosidade quando o tema é a Aymoré é o nome das dez casas, todos indígenas: Guarany, Tamoyo, Tupy, Goytacaz, Juruna, Kiriri, Carijó, Moema e Iracema – uma homenagem curiosa, visto que o Rio de Janeiro passava por um período “civilizatório”, no qual não cabia a presença indígena. 

O paralelo com a emblemática batalha de Uruçumirim, ocorrida aos pés do Morro da Glória, em 1567, foi inevitável: se, naquela época, os portugueses derrotaram franceses e tupinambás, consolidando simbolicamente o domínio sobre a América, séculos depois, as casas da Villa e seus nomes indígenas inscrevem sobre o território um novo capítulo dessa longa história. “A partir da relação entre lugar e espaço, procuramos analisar os elementos de identidade da própria Villa, abordando diferentes dimensões que lhe atribuem significado: a história de seus proprietários, a atribuição dos nomes indígenas, as transformações no morar entre o final do século XIX e o início do século XX, o olhar sobre as casas e seus moradores através dos jornais da época”. 

O “Jornal do Brasil” foi uma fonte de pesquisa. “Entre outros temas, nos arquivos do ‘Jornal do Brasil’, encontrei matérias sobre a demolição da Vila Operária. Foi uma cobertura corajosa, dado o contexto da época. Este foi um dos muitos apagamentos feitos na cidade”, destaca. “Ao trazermos tais discussões para o leitor, queremos chamar a atenção para os impactos práticos e cotidianos de uma nova organização social em curso desde o final do século XX, cujos desdobramentos estão muito mais perto de nós do que imaginamos”. 

Tomando as casas como referência, o livro é dividido em cinco capítulos, costurando acontecimentos emblemáticos da formação da cidade, desde os tempos da colônia até chegar à construção das casas da Villa, quando a Glória desfrutava de posição especial após a reforma do prefeito Francisco Pereira Passos. A autora conduz a narrativa até os dias atuais, passando pelo processo de esvaziamento do bairro a partir dos anos 1980, e culminando na compra da Villa em 2010 pela empresa que a restaurou e devolveu à cidade. 

O livro é ilustrado com fotos e documentos de diversos períodos da Villa, inclusive raras fotografias da família Mendes Campos. Também traz ensaios fotográficos feitos por Oscar Liberal da cidade e da Villa Aymoré após a revitalização, que converteu seu uso como residência para escritório, obedecendo ao movimento da transformação de uma economia baseada na indústria para a economia de serviço. Ao fazer uma história social da arquitetura, dos seus usos e apropriações enquanto patrimônio, Renata propõe uma reflexão sobre a cidade que queremos, sobre a cidade que não pode desistir de lutar pelas suas memórias e de preservar sua identidade, como forma de construir um espaço igual para todos. 

O livro recupera fatos que insistem em transitar do passado para o presente, quiçá futuro. Em 1864, entrou em funcionamento a “The Rio de Janeiro City Improvements Company Limited”, companhia inglesa responsável pela implantação e operação do serviço de esgoto na cidade - uma necessidade incontornável frente às pressões, sobretudo dos higienistas, face aos recorrentes surtos de febre amarela. O prédio da estação de tratamento de esgoto permanece até hoje na Glória, próximo ao Outeiro. 

Ao longo do Império, ficaram pelo caminho muitas iniciativas para eliminar a insalubridade no Rio. A ponto de o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas montar, em 1862, uma comissão de engenheiros e cartógrafos encarregada de elaborar um plano geral de abastecimento de água. Morosidade é coisa nossa, como vão demonstrando os acontecimentos. Está lá na página 74 que, depois de diversas polêmicas e discussões, em 1876, para alívio da população, o governo fechou um contrato com o empreiteiro inglês Antonio Gabrielli para a construção de um sistema que contemplava o aproveitamento dos rios da Serra do Tinguá (D’Ouro, Santo Antônio e São Pedro),distantes cerca de 53 km da área urbana e inaugurado apenas em 1880. 

Mas, nas primeiras décadas do século XX, já na República, o prefeito Pereira Passos toma as rédeas do emblemático “bota-abaixo” do Rio. “É nesse contexto que a Villa Aymoré será construída. A prefeitura demoliu um imenso número de construções, a fim de abrir espaço para os ideais civilizadores”, informa Renata. Autores divergem sobre o número de demolições, variando entre setecentos e três mil imóveis, mas todos concordam que, atuando principalmente sobre o antigo Centro da cidade, onde resistiam a cidade colonial e as habitações coletivas, quarteirões inteiros foram derrubados, atingindo cortiços, casas de cômodos e estalagens, além de armazéns e trapiches na área junto ao mar”. 

Gente expulsa da área embelezada ficou no Centro “em suas franjas e fendas deterioradas” (no dizer de Manoel Carlos Pinheiro e Renato Fialho Jr., citados no livro) pois os subúrbios, expandidos em direção ao Norte, com a estrada de ferro, não se constituíam em alternativa viável para os que sobreviviam de biscates ou recebiam pequenas diárias. 

A publicação ressalta que “o sistemático processo de desapropriação e despejo, aliado à instauração de medicas ainda mais impopulares, como a vacinação obrigatória, determinada pelo médico Oswaldo Cruz, levou à Revolta da Vacina, em 14 de novembro de 1904, demonstrando grande capacidade de mobilização da população. O movimento durou sete dias e acabou levando à decretação do estado de sítio na cidade. O estado de exceção foi prorrogado até fevereiro de 1905, entre debates acalorados de políticos opositores à gestão Pereira Passos e a imprensa. 

Para frear o descontentamento, Pereira Passos criou um imposto comercial (“imposto dos pobres”), a fim de amparar os habitantes mais pobres da cidade, bem como a transferência de escolas públicas para o subúrbio. “Mas a ação de maior repercussão foi o planejamento e a construção de duas vilas operárias localizadas no centro, tarefa até então delegada à iniciativa de empreendedores particulares: uma construída em direção ao Eixo Norte da cidade, na Avenida Salvador de Sá, e outro no Eixo Sul, na Glória, no Becco do Rio”, descreve a historiadora. 

O terreno do Becco do Rio foi adquirido pela prefeitura de Antônio Mendes Campos por 72 contos de réis em 1º de maio de 1906. No ano de sua conclusão (1909), o prefeito Serzedelo Corrêa autoriza que a vila fosse denominada Vila Operária Pereira Passos. Cerca de oito anos depois, um anúncio de classificados oferece aluguel das casas da Villa Aymoré, como localizou a historiadora ao longo de sua pesquisa. “Foi no ‘Jornal do Brasil’ de 19 de maio de 1917”, diz. 

“Essas duas dimensões do morar - que visavam atingir pessoas de condições sociais distintas - coexistiriam lado a lado de modo particular durante boa parte do século XX, indicando mais uma especificidade na forma como acidade experimentou a relação entre trabalho e moradia na transição para o capitalismo e na ligação co mo espaço urbano”, completa. (M.R.)