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Epifanias de Regina Vater 

‘Oxalá dê bom tempo’ exibe trajetória da artista carioca 

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A imensa “Mandala”, com jeito de oferenda, abre alas para a nova retrospectiva que a artista Regina Vater faz no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. Instalada logo na entrada do circuito expositivo, a obra foi selecionada pelos curadores Pablo Leon de La Barra e Raphael Fonseca para sintetizar o que está sendo apresentado em “Oxalá dê bom tempo”, que se constrói sobre séries dos anos 1960 e 1970. No próximo dia 31 de março, às 15h, acontecerá visita guiada com Regina,  dona de um dos mais significativos capítulos da arte brasileira desde 1964 (como destaca o crítico Adolfo Montejo Navas no texto ao lado).  A exposição reúne 80 obras entre instalações, vídeos, desenhos, séries fotográficas, todo conjunto conduzido em torno da temática metafísica. “Foi um dos aspectos que o curador Raphael Fonseca apontou diante do conjunto e concordo plenamente”, afirma a artista. 

Regina está adorando a reação do público aos trabalhos. Diz que há um diferencial na visitação. Vão atraídos pela monumentalidade do próprio MAC, se deparam com a exposição e apresentam as reações mais espontâneas. É gente com pau de selfie por toda parte. Em frente à obra “Cascavida”, ou deitados ao lado da obra “A mulher mutante” ou a instalação “Mandala” no chão. “É uma reação que não se vê muito nos outros museus. Isso é muito prazeiroso para mim”, avalia. 

Na visita guiada, será uma oportunidade rara do público se aproximar da história de Regina, pioneira no terreno do que se convencionou chamar de ‘artista multimídia’. Antes do tema entrar na pauta universal, Regina investigou a temática ecológica no início dos anos 1970, absorvendo influências das cosmologias africana e indígena. No MAC está um módulo dos mais de 50 anos de atividades em várias frentes. 

Como artista gráfica fez a capa do álbum “Calabar” (1973) de Chico Buarque, censurado durante a ditadura brasileira. Publicou mais de três livros infantis, sendo que “Tungo Tungo” e “Uma Amizade Temperada”, ambos de sua autoria, e o “Elefante” (que ilustrou para Carlos Drummond de Andrade), são os de maior sucesso. Premiada no Salão Nacional, em 1962, viajou para Nova York e Paris. Voltou e foi morar em São Paulo. Em 1980 radicou-se nos Estados Unidos, de onde só retornou em 2012.

Em protesto contra o governo do general Emílio Garrastazu Médici construiu um altar na Praia da Joatinga, com imagens de São Jorge e Nossa Senhora Aparecida com amigos da Escola de Desenho Industrial (Esdi). “Foi uma tentativa de protestar contra a forma como o Brasil vinha sendo espoliado e vendido. Na própria praia vi como a natureza estava sendo violentada, foi quando comecei a atuar como ativista. A natureza nos oferece epifanias. Te religa à coisa maior”.  

Além de trazer para sua rotina lutas pró-meio ambiente, a artista também trabalha com jardinagem. Em Austin, no Texas, começou a cultivar flores. “A questão cromática das flores foi o que me atraiu primeiro. Mas para cultivá-las tinha que lidar com a terra, cultivar a terra. Várias camadas foram me interessando”. 

A obra da artista abrange mais de cem instalações, realizadas desde 1970,  inclui trabalhos utilizando a fotografia como linguagem, desenhos sobre fotos, vídeo, poesia visual, performance e artes gráficas. Em 1976, representou o Brasil na Bienal de Veneza, primeira exposição internacional sobre meio ambiente, lá entrevistou Joseph Beuys, também pioneiro em relacionar arte e ecologia, inspiração para seu trabalho como professora e artista.

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CRÍTICA 

Uma oferenda visual

ADOLFO MONTEJO NAVAS*

Não deve ser por acaso que artistas que não pertencem ao mainstream estético brasileiro vêm sendo saudados com expectação renovada (Paulo Bruscky, Wlademir Dias Pino, Victor Arruda...). No caso da Regina Vater, apesar de sua volta ao Brasil há alguns anos, ainda paga seu “exílio” norte-americano de quase 40 anos, onde precisamente alcançou prestígio e internacionalizou seu trabalho com pares da talha de John Cage ou Hélio Oiticica. A sua mostra “Oxalá que dê bom tempo” no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói até 1º de abril, já aludindo a uma climatologia ampliada, por extenso, é uma minirretrospectiva sucinta mas emocionante, tão densa quanto sedutora, e que ajuda a re-situar sua poética e ajustar coordenadas historiográ?cas, ainda à espera de um panorama expositivo mais abrangente. De fato, tudo o itinerário aqui é fundamental. Assim, o repasso obrigatório de algumas obras históricas emblemáticas - cujo per?l político ou de gênero nunca é de carteirinha - já revela um olhar independente: seja no vídeo “Vide o dolorido” (1983), com sua simbologia brasileira colocada em xeque ou então a pioneira série de auto-retratos “Tina América” (1976), onde a artista disfarçada joga com a identidade e a alteridade de forma cáustica, fruto de circunstâncias biográ?cas de estrangeira (e talvez antes de Cindy Sherman mapear esse território). 

Outra situação se produz nas serigra?as de singular ?guração pop, que desvirtua situações standards femininas (“Tropicália”,1968) ou então através de desenhos híbridos (Nouvelle ?guration, 1966-67), de uma ?guração inquietante que já não estabelece limites entre interior e exterior do corpo, ou útero e cérebro. O que se poderá dimensionar de outra forma nas instalações apresentadas, sobretudo “Cascavida” (20002018) e “Mar do tempo” (2017), onde o valor do macro e do microcosmos se espelha no conceito, imaginário e nos materiais, seja pelas cascas de ovo ou pelas pedrinhas do mar numa espécie de mandala circular que também é altar. É o peso da natureza, portanto, um elemento nuclear nesta poética. Ora com “Cascavida”, uma obra prima remontada aqui como oferenda visual de reverberações poéticas, numa austera epifania contemplativa (cromática e objetual) que religa o ovo -como símbolo cósmico - ao mundo. Ora então com “Óxala que dê bom tempo”, uma rede de penas que retroalimenta o imaginário indígena que se respira nesta obra, presente também em “Nature mortes” (1987), naturezas em suspenso cujo âmago visual fotográ?co apresenta uma ferida representacional de signo cultural (não em vão, cultura e barbárie coabitam). 

Se Goethe ao morrer pediu mais luz, em “Tateando a luz” (2013, inédito), nos encontramos com a captura da luz feita com as mãos, uma série fotográ?ca que eleva a arte à altura necessária da linguagem do espírito (um trabalho de Arthur Omar faria par nesta paralela ambição). Uma convocatória artística, em suma, que não deixa de ser ontológica, que promove mexer com esse fundo e excesso que a obra de arte esconde como ambição do ser. Uma latência espiritual, de pensamento sobre a vida, a sua origem e mistério, gravita no ar. Com isso, a especulação linguística, visual, perceptiva de Regina Vater é consequência desse diapasão artístico transcendente, como ?ca evidente que a natureza, a política e o espírito possam ser simbióticos, fazer parte do mesmo corpus estético sem contraindicações.

* Poeta, crítico e artista visual. Autor de livros como “Iluminuras’, é curador da exposição ARRUDA: Victor,atualmente em exibição no MAM