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Cultura começou como biblioteca circulante 

Para o livreiro Pedro Herz, os pais são os melhores incentivadores da leitura

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“Quem me conhece sabe que eu repito a mesma ladainha há anos: o bom leitor se forma em casa. Não é na escola. É aquela criança que cresce vendo pai e mãe tomarem livros nas mãos, ainda que a rotina esteja corrida, os afazeres sejam muitos, o cansaço chegue mais cedo. Esse momento mágico, em que a correria da vida é substituída pelo silêncio e pela introspecção da leitura, serve como experiência formadora para os pequenos. É o estímulo para imitar algo que os ajudará a dar sentido à vida”. Esta é a opinião do grande livreiro Pedro Herz, presidente do conselho de administração da Livraria Cultura, que acredita também que ainda vale a pena contar histórias para as crianças na hora de dormir, como se fazia outrora. 

Ano passado, quando já estava com 77 anos e havia dado um passo de gigante, ao agregar à sua empresa as filiais da livraria Fnac no Brasil, Pedro foi incentivado por seu amigo Cassiano Machado, da Editora Planeta, a escrever suas memórias e reflexões. A ideia de Cassiano resultou em “O livreiro”, editado pela Planeta em novembro último. No livro, Pedro Herz conta sua vida e a caminhada da Livraria Cultura, já que as duas trajetórias não poderiam ser separadas, tão emaranhadas foram no passado e ainda o são. Enfim, um casamento feliz. 

Creio que se autor do livro não fosse Pedro Herz teríamos apenas mais uma clássica história de empreendimento comercial muito bem-sucedido, tanto que, em 2017, a Cultura completou 70 anos. Mas o filho de Eva e de Kurt Herz sabe contar histórias, transformando-as em  “causos” narrados ao pé da fogueira ou em mesa de bar, o que torna “O livreiro”, escrito com o auxílio da jornalista Laura Greenhalgh, uma delícia de ser lido. Varei duas noites com as páginas nas mãos, devorando o volume de capa verde. 

Tudo começou com uma biblioteca circulante criada pela mãe Eva Hertz, relata Pedro. Seus pais, judeus recém-casados, fortuitamente deixariam a capital alemã dominada pelos homens de Hitler pouco antes da famigerada Noite dos Cristais, que ensanguentaria Berlim na madrugada do dia 9 de novembro de 1938. Separados, pegariam navios diferentes para a América Latina, pois Eva, que era filha de um banqueiro, foi alertada que deveria partir imediatamente pelo advogado Alfred Hirschberg. No momento da fuga ela não sabia onde estava Kurt.  Quis o destino, porém, que os dois viessem a se reencontrar em Buenos Aires. Depois se fixariam em São Paulo, onde teriam a alegria de rever Alfred. O casal moraria num sobrado perto da Rua Augusta com a irmã de Eva, Hilde, cantora de ópera, e com o cunhado, Hugo Salomon. Kurt e Hugo eram representantes comerciais.

Em 1947, quando Pedro estava com sete anos e seu irmão Joaquim com quatro, a fim de ajudar a complementar a renda doméstica, Eva teve a ideia de comprar dez livros de autores alemães e montar uma biblioteca circulante ou círculo de livros para os amigos que estavam em São Paulo. O projeto deu certo. A biblioteca foi se expandindo, englobando outros livros de autores estrangeiros, revistas, livros de escritores nacionais, obras didáticas e objetos de papelaria. 

Com isso, o sobrado dos Herz (foram vários, sempre próximos à Rua Augusta) na parte da frente, ficou tomado por volumes, só havendo espaço para a família nos quartos, quintal, cozinha. Eva Herz trabalhava o tempo todo. Quando não atendia os clientes por telefone, estava cozinhando. Uma história da qual Pedro gosta de contar é a seguinte: um dia, uma cliente entrou e perguntou a Kurt se eles tinham ainda “Nossa vida sexual”, do médico alemão Fritz Kahn. Ao que ele gritou para dentro de casa: “Eva, ainda temos nossa vida sexual?”. 

Estudando para ser livreiro 

Em meados de 1958, Pedro ficou com vontade de viajar e a mãe o incentivou: “vai ver o mundo, meu filho”. O rapaz, que na ocasião estava com 18 anos, havia trabalhado na Livraria Melhoramentos, na rua Augusta, em frente ao sobrado dos pais. O dinheiro da viagem seria curto – apenas a pequena poupança que fizera e alguns recursos disponíveis dos pais - mas havia uma vantagem: o irmão de Kurt, Erich, morava na Basiléia com sua esposa Ruth. Eles não tinham como hospedar o sobrinho no quarto e sala que habitavam, mas o instalariam numa pensão. Pedro trabalharia na Buchhandlung Wepf, uma das mais tradicionais livrarias da Suíça, e frequentaria um curso de formação de livreiro. 

Aprenderia a montar um arquivo, a estruturar a contabilidade de todos os setores de uma livraria, a controlar o estoque, a conferir faturas, a organizar uma seção de livros pelo nome de autores em ordem alfabética, etc. O estoquista contaria que um dia ficara em frente a Adolf Hitler com uma arma na mão. Pensara em matar o ditador, mas não tivera coragem. O curso foi importante, mas mais importante foi ter conhecido na livraria suíça Veter, um professor de filosofia, funcionário da loja, que sabia conversar agradavelmente com os clientes. Teve também o prazer de conhecer Otto Frank, o pai de Anna, amigo próximo dos tios Erich e Ruth. E veria na Basiléia a peça “O Diário de Anne Frank”. A cidade até hoje sedia um Fundo Anne Frank, criado por Otto.  Terminado o curso, Pedro iria para a França, onde trabalharia de ajudante de garçom, e depois para Inglaterra, onde seria professor de inglês e locutor da BBC. Dois anos haviam se transcorrido. Hora de voltar. 

Passa por vários empregos. Hoechst, Quadro Rodas.  Em 1968 se casa com Rosa Maria, que lhe daria dois filhos, Sérgio e Fábio. Em fins de 1968, quando Eva decide fechar a Biblioteca Circulante, que já durava 22 anos em casa, e transferir a loja para o Conjunto Nacional, na esquina da rua Augusta com a avenida Paulista, ele vai trabalhar com ela. “Abrimos a loja em abril de 1969, ousando dar um salto...E lá fomos nós , com nossos livros, para dentro daquele gigante arquitetônico, uma espécie de cidade dentro da uma cidade. Como o aluguel da loja era alto, resolvi pedir demissão do emprego na Abril para trabalhar com minha mãe”. Estava com 28 anos e nunca mais deixaria de ser livreiro. Essa primeira loja dando para rua era muito simpática, observa Pedro. Tinha uma estante redonda de madeira, que era chamada de “roda”. E um móbile com três lâminas metálicas que se movimentavam no ar, em círculos concêntricos.

Entre erros e acertos o processo de expansão da Livraria Cultura não parou nunca. Tanto que hoje ela tem 17 filiais pelo país e 1.500 funcionários, sem contar as 30 lojas que anexou recentemente ao comprar a FNAC brasileira. O acervo é de 9 milhões de livros.  Ele crê que uma das causas do sucesso da empresa foi a orientação da mãe de que o lucro deve ser reinvestido. Projetos que não deram certo foi uma Cultura perto da boca de um metrô e outra próxima a uma universidade, Houve também a editora HRM – aventura conjunta com Ricardo Ramos e Gilberto Mansur -, que mostrou a Pedro que ele não era editor, mas livreiro mesmo. Já os projetos que deram certíssimo foi o da construção da livraria-âncora no shopping Villas-Boas e a ampliação das quatro lojas do Conjunto Nacional, com a ocupação do Cine Astor.

Mesmo sendo caro e luxuoso, o projeto no shopping Villas-Boas ficou belíssimo e ganhou prêmio de arquitetura. Ter uma livraria em shopping que também vendesse CDS e DVD foi uma ideia de Roberto Bielawsky, empresário da área de alimentação (foi dono da cadeia de cafés Viena e hoje é dono da rede de restaurantes Ráscal). O arquiteto foi Fernando Brandão. O espaço era de 3.350 m2. Teria que ser bem acolhedor para manter o comprador lá dentro. Com isso, as estratégias para retenção dos clientes foram surgindo: um auditório de 139 lugares, com um piano, que seria batizado de sala Eva Herz, em homenagem à mãe de Pedro; um espaço para as crianças, com um dragão, e um cafezinho para os adultos. A abertura ocorreu em 19 de abril de 2.000, após um ano e meio de obras, e Pedro Herz considera que esta livraria foi uma espécie de grande laboratório da expansão da Livraria Cultura. 

Depois viriam as lojas de Porto Alegre, Brasília, Recife. Num ritmo de uma Livraria Cultura por ano, sempre com a assinatura de Fernando Brandão.  A única loja que escapou à sua marca foi a do Shopping Iguatemi, em São Paulo, já que o próprio shopping, no caso, entregou a construção ao arquiteto Marcio Kogan. Já a grande loja do Conjunto Nacional, com o espaço adicional do Cine Astor, foi inaugurada em 21 de maio de 2007. José Saramago a visitou e disse que era “uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. Uma livraria para se comprar livros, é claro, mas também para desfrutar do espetáculo impressionante de tantos títulos organizados de forma tão atrativa, como se não fosse um armazém. A Livraria da Cultura é uma obra de arte”. 

Chorando em Frankfurt 

Como disse antes, são vários os causos que Pedro Herz conta ligados à livraria ou à sua vivência de livreiro. A primeira experiência em Frankfurt foi terrível. Pedro não tinha ideia de como os negócios eram feitos na maior feira de editores e negociantes de direitos literários do planeta. Quando foi para lá em 1973, com 33 anos, achava que a Livraria Cultura já estava bem  estabelecida no mercado como importadora de livros estrangeiros, o mesmo ocorrendo com o nome do livreiro Pedro Herz. 

Só que, ao chegar no evento, descobriria que era um completo anônimo.  “Ninguém me recebeu, ninguém me conhecia, ninguém me dirigiu a palavra”. O jeito foi ficar pegando catálogos, propagandas, folhetos de tudo o que ocorria na feira, enchendo bolsas. Quando não podia mais carregar o peso e resolveu voltar para o hotelzinho onde se encontrava hospedado, verificou que não tinha táxi, ônibus ou carro reservado. O portão da feira bateu atrás de Pedro e ele chorou sentado na calçada. Claro, tudo se corrigiria nos próximos 44 anos, com o dono da Cultura conquistando a todos, fazendo parceiros comerciais fiéis, participando de coquetéis. Mas como ele mesmo diz, “a primeira feira de Frankfurt ninguém esquece”. 

Pedro não esquece também dos momentos felizes e infelizes que viveu dentro da principal Livraria da Cultura, a do Conjunto Nacional. Houve o tempo da censura, dos policiais cercando a loja ou dentro dela. Os lançamentos mais vigiados foram os dos livros “Cuba de Fidel: viagem à ilha proibida”  e “Zero”, de Ignácio Loyola Brandão, e o de “O que é isso companheiro?”, de Fernando Gabeira, que lotou a loja. O lançamento de um livro com críticas a Maluf acarretou a visita de um delegado acompanhado e  um meganha com metralhadora. Delegado que, no dia seguinte, se disse poeta. 

Tem também a história do atraso de duas horas de Vinicius de Moraes. O “poetinha” confessou que ficara andando de bar em bar até chegar à Cultura. Um fato estranho comenta Pedro Hertz, é que brasileiro tem mania de lançamento. É um evento social que pode criar terríveis constrangimentos para os livreiros quando o público não aparece. Foi o que aconteceu com Ivo Pitanguy. Pedro achou que seria um grande lançamento, mas não foi ninguém. Concluiu que as mulheres que haviam feito plástica ficaram sem graça e não quiseram dar as caras. 

Livrarias exigem muita segurança. As crianças mexem em tudo, sob o olhar benevolente dos pais, e os adultos também manuseiam os volumes sem cuidado e trocam os livros de lugar. Para isso, existem os “catadores” de livros, que os recolocam nas estantes. Há cleptomaníacos e apenas maníacos. Entre eles, Pedro teve contato com um costureiro de renome que gostava de roubar obras de luxo. Ele nunca desconfiou. Mas o próprio costureiro um dia revelou seu vício. E prometeu pagar tudo em prestações. Cumpriu a palavra. Quanto ao maníaco, um deles entrou na loja com uma faca e um taco de beisebol e bateu na cabeça de um cliente. O cliente morreu. A tristeza foi imensa.

Em compensação, a criação do Vira Cultura, organizada e promovida pela Prefeitura de São Paulo, foi uma imensa alegria. Os primeiros anos foram uma explosão: “Tivemos sessões de cinema lotadas às duas da manhã no Cine Cultura, conversas com autores, rodas de samba, pecas de teatro, exibições de dança, contadores de histórias e um show à meia-noite no Teatro Eva Herz com Lobão. Que noite memorável”.  

Qual o futuro do livro, para onde vai o varejo? Pedro Herz não sabe dizer. Sabe que existe uma “Internet das coisas” que vende de tudo. Pessoalmente nunca deixará de acreditar no livro impresso. Ah, faltou o incêndio...Não, foram dois incêndios. A estrutura da empresa. O filho Sergio que é o CEO, e o mais novo Fábio, que deixou o negócio, mas não a sociedade. Lamento, mas ficam para outra vez.