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Os esquecidos do Araguaia 

Documentário mostra ex-soldados do interior do país que foram torturados pelo próprio Exército

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A História do Brasil, por tantos séculos registrada sob a ótica dos vencedores, esconde muitas  outras, invariavelmente dolorosas. A Guerrilha do Araguaia é um desses acontecimentos nebulosos, mesmo passadas mais de quatro décadas.  No documentário “Soldados do Araguaia”, que estreia hoje no Rio, São Paulo e Belém, o diretor Belisario Franca  opta por um recorte praticamente inédito do massacre que aconteceu entre 1967 e 1974  na selva amazônica. “A guerrilha é muito complexa e o que a gente sabe é que foi aterrorizante para todos os envolvidos: moradores, indígenas, militantes e militares de baixa patente”, fala Belisário, que optou por se deter nas versões dos soldados recrutados à época no local.  

Os oito entrevistados não são vítimas convencionais da ditadura, pois, além de terem sido torturados, mesmo sendo do Exército, tiveram que superar a rejeição da instituição depois que a guerrilha acabou. “Isso mostra que o terror de estado não tem fronteiras, é uma questão muito dura. Eles não foram torturados para confessar nem dar informações, foi para endurecerem e virarem instrumentos de terror. Isso é de uma obscenidade absurda”, diz o diretor. 

Alternando depoimentos dos ex-soldados com cenas atuais da região e outras poucas da época - imagens e fotos de arquivo - Belisario diz que a palavra-chave na produção deste documentário foi confiança. Traumatizados com o que passaram, esses homens estavam tendo, finalmente, a chance de desabafar e relatar o que passaram ao longo de seis anos. “Estávamos ali para ouvir testemunhos e não para entrevistar. Encontramos, na pesquisa, 20 ex-soldados. Alguns não quiseram participar e outros não quiseram falar para a câmera. Ao escolhermos esses oito, tentamos contar uma história coletiva”, explica. Em uma exibição feita em Marabá, no Pará, há alguns meses, Belisario conseguiu reunir quase todos os participantes e conta que aqueles que tinham optado por não dar depoimentos se emocionaram tanto que, como numa catarse, resolveram falar tudo publicamente. 

Quando o Exército chegou no local “para acabar com os comunistas”, fez um alistamento local, só que os jovens achavam que estavam ali apenas para receber seus certificados. Foram 60 recrutados, preferencialmente aqueles que melhor conheciam a região, para adentrar na mata amazônica sem sequer saber qual seria a missão. “Não me orgulho de ter participado daquilo”; “Aquilo não era instrução, era tortura”, “Perdi meus testículos porque me colocaram no pau de arara”; “A gente poderia matar qualquer um que não aconteceria nada”; “Eu estava há dois dias sem comer e tive que beber sangue coagulado de um boi”; “Eles mandavam a gente destruir as roças dos moradores”, relatam os os homens traumatizados, que dizem ter, até hoje, os mais terríveis pesadelos com o que passaram na mata. Não só foram torturados, como eram obrigados a assistir a torturas dos militantes e de moradores locais. “Depois de os maltratarem, davam sabonete Gessy e desodorante e os colocavam no helicóptero, dizendo que iriam para Brasília. Só que voltavam 20 minutos depois, porque, na verdade, atiravam os presos na cachoeira”, testemunhou um dos entrevistados no filme. 

Belisario conta que muitos trechos, de tão chocantes, foram cortados. “Se ficarmos apenas no escândalo, não saímos disso, então, buscamos um equilíbrio nos depoimentos. É preciso dar outras camadas, descobrir os cinzas entre o preto e o branco para mostrar que esses homens foram jogados à própria sorte, sem perspectiva alguma”, explica. O diretor conta que a opção por colocá-los frente a uma câmera, num fundo preto, foi uma opção mais do que fotográfica: “Queríamos que eles fi cassem à vontade e tivessem o tempo que fosse necessário para falar, sem ordem cronológica. sem máscaras, sem efeitos”.    

A região onde aconteceram os conflitos, principalmente no Bico do Papagaio, é estratégica, a tal ponto que, mesmo depois do conflito, o Exército permaneceu ocupando o local. “É uma região esquisita e, ainda hoje, eles temem represálias. Ano passado,em circunstâncias não esclarecidas, morreu um homem que era mateiro, um dos que cooperavam com o Exército, mas que não eram militares. Outro aspecto grave, destaca o documentarista, é que o Coronel Curió, que liderou as tropas na época do extermínio, foi, posteriormente, controlador da Serra Pelada. 

Trilogia do silenciamento

“Soldados do Araguaia”, que tem sessão comentada com o diretor hoje, às 19h, no Espaço Itaú de Cinema, em Botafogo, é o segundo documentário de uma trilogia. O primeiro foi o longa “Menino 23”, sobre crianças órfãs negras, que foram escravizados numa fazenda na década de 1930.  “’Soldados’ segue esta questão, que a sociedade brasileira negou e nem assume seus preconceitos. Daí, vem  a violência em que estamos imersos” 

O diretor diz ter reunido um vasto arquivo durante as filmagens, o que  mais à frente pode gerar outro trabalho.  Belisario pretende concluir a “trilogia do silenciamento”, com novo documentário, onde vai abordar a questão prisional: “Já rodamos este documentário no Pará - que, aliás, é um ecossistema da violência - e que está em fase de edição. Nele, vamos falar desses locais, que são verdadeiros porões”.