ASSINE
search button

Ítaca é aqui

Disputada por europeus, a carioca Christiane Jatahy realiza a sua bem-sucedida Odisseia na França

Compartilhar

PARIS - “Ela vive em um país sem governo eleito. É crise pra todo lado”, fala para a plateia o ator francês Cédric Eeckout. Com o dedo em riste, ele aponta para uma Penélope brasileira, impotente diante da farra de seus pretendentes na ausência do marido Ulisses. Aos risos, os homens a tinham tirado do poder em uma rápida votação.

É assim, com o pé na porta, que a diretora carioca Christiane Jatahy (50) abre o seu mais novo espetáculo, Ítaca, uma adaptação da Odisseia de Homero. A peça fica em cartaz até o dia 21 de abril no Odéon de Paris, um dos seis teatros nacionais da França. Efusivamente aplaudida, a montagem inicia seu próprio périplo. Até o fim do ano, vai à Portugal, Alemanha, Bélgica e Grécia. Se tivermos sorte, chega em casa.

Expoente do intercâmbio entre teatro e cinema, Jatahy segue fiel ao receituário que a consagrou junto à crítica dos grandes centros. Além de projetar imagens filmadas em tempo real, cruza ficção e realidade em um texto tomado por questões contemporâneas, como o colapso imigratório no norte da África, a violência contra a mulher e a guerra, em estado puro ou disfarçada. “O que se passa hoje no Brasil se aproxima muito de Ítaca, continuamente devorada pelos ‘pretendentes’. A corrupção e os golpes violentos dados na democracia também devoram o país”, explica a diretora, hoje associada a três renomados teatros franceses e belgas, além de Artista da cidade de Lisboa em 2018.

Ítaca guarda o mesmo distanciamento brechtiano e grau de improviso de suas peças anteriores, como a marcante A falta que nos move, adaptada para os cinemas em 2011 com altas doses de experimentação. “É como se o trabalho anterior, de alguma forma, abrisse a porta do próximo, ou fosse o mesmo sob novos pontos de vista”, explica Jatahy, que define sua pesquisa como “um grande novelo”.

Dessa vez, o processo criativo parte de entrevistas realizadas para o seu projeto anterior ?—? Moving People ?—? com três refugiados que atravessaram o Mar Mediterrâneo para chegar à Europa. Em seguida, Jatahy se reuniu com os atores para uma série de exercícios de improvisação que alimentaram a redação do texto final, etapa realizada em apenas um mês. Durante a peça, reunidos em um caderno que funciona como elo entre a criação e o mundo real, os depoimentos dos refugiados são lidos em diferentes momentos dos três atos.

Na montagem final, os seis atores? —? as brasileiras Julia Bernat, Stella Rabello, Isabel Teixeira e mais três franceses — ?evoluem em um palco cercado por duas plateias. Não há personagem fixo e o espaço cênico está dividido por cortinas de fios prateados, nas quais são projetadas as filmagens realizadas ao vivo pelos artistas. Além de multiplicar os pontos de vista sobre uma mesma cena, essas cortinas delimitam dois lados: “Itaca”, onde Penélope aguarda o regresso de Ulisses, e um “lugar de passagem”, que pode ser lido como a ilha da ninfa Calipso, onde o herói passa sete anos aprisionado.

Em quase duas horas, as metades do público só podem ver um dos ambientes e trocam de lado durante uma pausa. No terceiro e último ato, quando o herói retorna à sua cidade, as cortinas se levantam e todo o palco é inundado por uma alta camada de água. De forma repentina, as metáforas migram do texto para performances de grande exigência física. O épico dos versos de Homero se adapta a uma dramaturgia pós-moderna.

“Eu sempre trabalho a partir do espaço, que é determinante para a construção da mise-en-scène. Esse espaço é dramático e deve criar uma relação direta com o espectador”, detalha Christiane Jatahy. O cenário, que entra lentamente em colapso, é familiar: tudo se passa em salas de um apartamento dos nossos dias, onde há uma grande festa com direito a comes e bebes literalmente oferecidos aos espectadores. 

O som vindo do outro lado se torna um ruído natural e as músicas são quase sempre brasileiras: Caetano, Maria Bethânia, Belchior, Secos & Molhados, cada um com direito a uma introdução didática para o público europeu, a todo instante provocado sobre seu status de estrangeiro. Pelo menos ali, durante aquele espetáculo, na Ítaca brasileira.

*especial para o JB