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Crítica: “O Contestado – Restos mortais”

Documentário desenterra os fatos do maior conflito civil da era republicana.

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Total ausência de estado. Uma população camponesa pauperizada a mercê dos falsos profetas. Contratos escorchantes com o todo poderoso Percival Faquhar. Não é das tarefas mais fáceis compreender o incidente que iniciou uma guerra de quatro anos na região do Taquaruçu, em Santa Catarina. Mas, o documentário O Contestado – Restos Mortais, do diretor Sylvio Back (de Aleluia Gretchen e Lost Zweig, entre outros) procura contextualizar as sangrentas pelejas entre os caboclos e as forças do governo, entre os anos de 1912 e 1916.

Esteticamente o filme é bastante sóbrio, prezando por câmeras com pouca movimentação, planos fechados e iluminação dura, com alternância para luz natural. As animações, porém, são tecnicamente fracas. Algumas vezes as inserções dessas animações quebram o discurso dos entrevistados. Além disso, a voz off simulando uma transmissão de rádio é um tanto saturada. Ainda assim, as poucas fotografias que os arquivos guardam do conflito ajudam o filme a dimensionar a importância desta guerra civil. A narrativa é linear e segue a ordem cronológica do conflito.

Por meio do depoimento de nativos e historiadores, a memória coletiva atesta como o estopim da guerra a invasão do beato e curandeiro José Maria da região central de Santa Catarina, ao sul do Paraná. Tais terras eram ricas em madeira e erva-mate, o que acentuou a ira dos proprietários rurais paranaenses. O capitão da Polícia Militar do Paraná João Gualberto foi delegado ao comando das tropas para liquidar o piquete de José Maria. E foi trucidado, juntamente com seus homens.

Santa Catarina e Paraná mobilizam suas armas para destruir José Maria e conseguem. Porém, a cada morte de uma liderança, o movimento torna a se rearticular sob a égide de outro guia. João Maria, Maria Rosa, Dona Querubina e finalmente Adeodato. Ao mesmo tempo, os caboclos viam suas terras serem tomadas a força pela empresa Southern Brazil Railway, o que incentivou a migração aos redutos do Contestado. Para proteger os interesses da República contra a autoproclamada monarquia sebastianista – e também defendendo os interesses do capital americano - o governo brasileiro lança seu exército contra os caboclos.

É importante avaliar no documentário a participação de Todd A. Diacon, brasilianista da Universidade do Tennessee. Ele se posiciona favoravelmente a ação da Southern Brazil Railway e aponta com legitimidade as debilidades do estado brasileiro no conflito. Igualmente curioso é o depoimento dos agricultores de origem alemã, que recolonizaram a região do Taquaruçu após o genocídio da população parda e negra, empreendida pelo exército brasileiro. O discurso dos descendentes dos que fizeram a guerra, no entanto, é o documento mais precioso apresentado pelo filme.

Há de se dizer que a produção de Sylvio Back é extremamente ousada. A película é permeada por inúmeras sessões de incorporação. Deduz-se que os autores dessas intervenções espirituais sejam os soldados e posseiros mortos na guerra. Algumas imagens são fortes. Por essa razão , no centenário da Guerra do Contestado, é possível dizer que, em termos históricos, é o documentário do ano. Não irá agradar a todos, porém. Talvez nem aqueles que tenham estômago.

Cotação: ** (Bom)