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Em livro, Niccolo Ammaniti retrata uma sociedade destruída

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Lúcia Bettencourt , Jornal do Brasil

RIO - Como Deus manda, que nos chega recomendado pelo Prêmio Strega, já se transformou em filme, em 2008, sob a direção de Gabrielle Salvatores. Logo nas primeiras páginas o leitor encontra muitas afinidades do romance com a linguagem cinematográfica, diversas citações de atores, de propagandas e programas televisivos. Os cenários destroçados são descritos com cuidado, criando, com as palavras, as ruínas de uma cidade da periferia, chuvosa, enlameada e triste, habitada por uma gente suja, melancólica, violenta e extremamente apaixonada. As semelhanças com um roteiro não são pequenas nem acidentais. Niccolo Ammaniti já teve outro romance adaptado pelo mesmo diretor, obtendo grande sucesso internacional Eu não tenho medo a história real de um sequestro de uma criança do qual toda uma cidade se torna cúmplice.

Para quem não conhece o prêmio recebido por Ammaniti, ele existe há mais de 70 anos sob o patrocínio dos licores Strega, e já laureou Lampedusa (1959) pelo seu famoso Il Gattopardo. Em 1981 agraciou o romance O nome da rosa, de Umberto Eco. Primo Levi e Piero Citatti, autores de livros marcantes e de muita importância literária, também foram merecedores da mesma premiação. Ammaniti nos chega com esses companheiros, e isso, sem dúvida, gera uma enorme expectativa em torno de seu romance. Os tempos mudam, porém, e os patrocinadores do prêmio também mudaram. Financiado por uma companhia de telefonia, a obra atualmente agraciada se destaca mais pelas características pop que pelos tradicionais valores literários usados, anteriormente, como parâmetro.

Tatuagens e piercings

Trabalhando com poucos personagens, mas todos fortemente caracterizados, marcados por tatuagens e piercings ou por defeitos físicos que os tornam quase caricaturais, o autor pretende fazer um retrato de uma sociedade destruída pela falta de oportunidade de trabalho, pelas crenças políticas de direita, pela influência perniciosa de uma TV que mostra programas cada vez mais anestesiantes, sem conteúdo e forçando o consumo na cabeça de tantas pessoas desvalidas. Numa pequena cidade cuja economia foi descaracterizada pela vinda de fábricas que depois faliram, num país cuja industrialização incipiente se encolhe por causa das crises internacionais, seus habitantes parecem sobreviver apenas para poderem se odiar. Até mesmo o amor se traduz em violência e medo. Pai e filho, Rino e Cristiano Zena, possuem um vínculo muito forte entre si, mas sua relação é doentia: o pai é alcoólatra e está desempregado; trata o filho com rigor, ensinando-lhe valores machistas. Logo na abertura do romance este homem força seu filho a sair da cama e caminhar pelo frio da madrugada, carregando uma arma, para matar o cachorro da propriedade vizinha que, com seus latidos, o incomodava. E o jovem o obedece, como o obedecerá em todas as suas exigências violentas.

Cristiano é um menino louro que se interessa pela escola, embora se sinta deslocado e marginalizado pelos professores e colegas com mais dinheiro. Ele convive com outros dois amigos de seu pai, o lesado Quatro Queijos que sobreviveu, apesar de ter sido fulminado por uma descarga elétrica, e Danilo Aprea, um janota que, após a morte da filha e o abandono da mulher, torna-se alcoólatra. Este último elabora um plano para roubar um caixa automático, mas, na noite marcada para a execução do assalto, tudo dá errado. Uma tempestade alaga a cidade, ventos destroçam propriedades, os interesses sexuais de Quatro Queijos falam mais alto que seus compromissos com os companheiros de roubo, e o acaso faz que o caminho de pessoas díspares se cruzem, provocando mais morte e destruição.

Ammaniti não permite que seus personagens tenham redenção. Seus defeitos levam a melhor em todas as ocasiões. Acompanhamos, passo a passo, a decadência de cada um, vemos os esforços desesperados das pessoas que tentam escapar de seus destinos, mas que sucumbem, vítimas da violência gratuita que suas limitações lhes indicam como única saída. A mulher é duramente representada dentro do romance. As mães abandonam filhos e maridos, ora são permissivas demais ora rígidas e, paradoxalmente, omissas. Elas são objetos sexuais, tratadas a pontapé, drogadas. Os pais, amorosos, porém canhestros, não conseguem salvar seus filhos dos destinos que lhes foram reservados, e se forem filhas, acabam morrendo diante de seus próprios olhos.

Homens fracos

Em julgamento, porém, estão as responsabilidades sociais que, nas mãos de homens fracos, não conseguem proteger a população dos danos provocados pelo capitalismo desordenado cuja promessa de melhores condições de vida para as massas nunca se realiza. Talvez por isso a figura do assistente social, a quem Rino se vê obrigado a satisfazer para manter a guarda de seu próprio filho, seja tão autoindulgente, sem a firmeza necessária para se opor aos acontecimentos que se prenunciam.

Niccolò Ammaniti, com seu elenco de personagens desajustados e infelizes, é saudado como sinônimo de talento na Itália, e tem sido reconhecido como tal pelos críticos americanos. Sua escrita aproxima-se da estética dos filmes de ação hollywoodianos, e tem a força da violência gratuita que descreve. Ao retirar de episódios reais os enredos de seus romances, revela os problemas de um país em decadência social, aproveitando-os em romances-roteiros que não fariam feio se exibidos nos anfiteatros romanos do passado.