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Livro de Jorge de Sena é uma caça às bruxas em Portugal

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Alexandre Montaury, Jornal do Brasil

RIO - Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 1919, tendo-se afirmado como poeta, ensaísta, dramaturgo, crítico e tradutor, apesar de sua licenciatura em engenharia, obtida em 1944, na Faculdade de Engenharia do Porto. Deixou uma obra multifacetada, distribuída em livro e em vasta colaboração dispersa por jornais e revistas como Seara nova e Árvore, para citar apenas dois veículos fundamentais para os estudos de literatura portuguesa do século 20.

Em 1942, estreou como poeta com o livro Perseguição; em 1946, publicou Coroa da terra e, em 1950, Pedra filosofal. Nos anos seguintes, publicou os dramas O indesejado, em 1951 e, no ano seguinte, Ulisséia adúltera, tendo regressado à poesia em 1955, com As evidências.

Em 1958, ao incluir-se na terceira série das Líricas portuguesas, de que foi também o organizador (a primeira e a segunda séries ficaram a cargo de José Régio e Cabral do Nascimento, respectivamente), o escritor buscou definir a sua poesia como algo que se representa alguma coisa, representa um desejo de independência partidária da poesia social; um desejo de comprometimento humano da poesia pura [...] e sobretudo um desejo de exprimir o que entende ser a dignidade humana uma fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo .

No final dos anos 50, com o amadurecimento de sua atuação crítica em Portugal, Jorge de Sena passou a representar, para alguns jovens associados ao surrealismo, um modelo excessivamente oficial de leitor-crítico, como evidencia a carta escrita por Mário Cesariny de Vasconcelos e recebida pelo autor em 1958: Recebida a sua carta-circular onde me anuncia estar eu incluído no terceiro volume das Líricas portuguesas por si, Jorge de Sena, organizado, mas ainda, felizmente, em preparação, venho dizer-lhe que será de meu total desagrado a efetivação de tal anúncio, pelo que muito lhe peço e recomendo me não faça participar do novo ramalhete dos talentos. Como sabe, esteja eu certo, esteja errado não é para discutir são-me sumariamente repelentes as alegrias excursionistas proporcionadas por este tipo de assembléia nacional .

O pedido de Cesariny não foi atendido e, no ano seguinte, Jorge de Sena retirava-se da atmosfera salazarista que controlou os portugueses até 1974 e optou por um autoexílio no Brasil, que durou de 1959 a 1965. A sua permanência no Brasil permitiu uma reorientação profissional após o doutoramento em letras na Faculdade de Araraquara, em 1964, que permitiu a obtenção do diploma de livre-docência, a naturalização como brasileiro e a substantiva ampliação de sua produção acadêmica.

No Brasil, Sena talvez tenha vivido o seu período mais criativo: finalizou, em 1963, a sequência de poemas sobre obras de arte visual, Metamorfoses, influente referência na poesia portuguesa; escreveu textos experimentais como Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena e Arte de música, tendo escrito, em 1964, a novela O físico prodigioso, que acaba de ser publicada no Rio de Janeiro graças à editora 7Letras.

Publicada inicialmente em Novas andanças do demónio (1966), a novela é um exercício alegórico do humano em tensão constante com o divino. Dividida em 12 capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a novela O físico prodigioso se desenvolve em torno de um castelo de contornos medievais, ambientado em território não-nomeado e habitado por donzelas virgens que são também bruxas insaciáveis, comandadas por dona Urraca.

A escrita de Jorge de Sena explora ambiguidades e jogos de identidades entre as personagens (cavaleiro, diabo, senhora, donzelas e frades), articulando mitos clássicos (Adônis e Bacantes) a ritos tradicionais. Em meio a uma atmosfera que remete diretamente à literatura fantástica, cruzam-se referências cristãs e pagãs com códigos do amor cortês e do amor místico, numa celebração da liberdade e das metamorfoses do corpo.

Nesse cenário de feitiços e de magia, instala-se o personagem principal que nomeia a novela que, com poderes mágicos, como curar os outros com o próprio sangue, dispõe também da habilidade de se tornar invisível quando veste o seu gorro encantado. Todos os seus poderes passam, de alguma forma, pelo corpo que concentra forças primordiais incontroláveis e instintivas que vão além das percepções, além do erotismo, afinal, o seu corpo é também diabólico e perverso. Perseguido pelo Santo Ofício, o personagem, ao longo de seu processo inquisitorial, funciona como uma imagem mordaz da caça às bruxas levada a efeito no tempo das ditaduras.

Rica em erotismo e romance, a novela mescla linguagens poéticas, estabelecendo um diálogo entre narrativas medievais e cantigas de amor e de escárnio.

Desse modo, com a sua obra, Jorge de Sena parece propor uma sistemática ultrapassagem de limites morais, sensuais e cognitivos, o que certamente representa um esforço de combate a normas conservadoras e domesticantes que, em Portugal e no Brasil, estavam em plena vigência.

Com o golpe militar de 1964, temendo retroceder ao ambiente autoritário que conheceu em Portugal, Jorge de Sena aceitou transferir-se, em 1965, para os Estados Unidos, para integrar o corpo docente da University of Wisconsin, Madison, onde foi nomeado, em 1967, professor catedrático efetivo. A partir de 1970, atuou na University of California, em Santa Bárbara, cidade em que veio a falecer, em junho de 1978.