ASSINE
search button

Inteligência corrosiva e humor unem dupla paulista

Compartilhar

Marco Antonio Barbosa, Jornal do Brasil

SANTOS - Um diz que, de tanto ser confundido com os próprios personagens, acabou parando numa clínica de reabilitação para dependentes químicos. O outro, com 10 livros publicados e um décimo-primeiro a caminho, abandonou uma entrevista para a TV no meio ao descobrir que o interlocutor não tinha lido seu livro. O primeiro é Lourenço Mutarelli, consagrado quadrinista, hoje romancista de carreira sólida (O cheiro do ralo, O natimorto) e também ator. O segundo é Marcelo Mirisola, autor de Animais em extinção (2008) e O azul do filho morto (2000) e uma das vozes mais ácidas e iconoclastas de sua geração de literatos. As duas figuraças proferiram essas e muitas outras tiradas hilárias e bastante reveladoras num encontro patrocinado pela Tarrafa Literária (ou, como deve ser chamada oficialmente, o Primeiro Encontro Internacional de Escritores em Santos). Em sua edição inaugural, o evento, iniciado na última quinta-feira e com uma programação que se encerra hoje, levou à cidade praieira do estado de São Paulo autores como Ruy Castro, Milton Hatoum, Amir Klink, José Roberto Torero e Laurentino Gomes para palestras, encontros com o público e bate-papos em geral. Em meio a tantas feras, a dupla formada por Mutarelli & Mirisola parecia até coajduvante. O que faltou em (suposto) status sobrou em bom-humor e inteligência corrosiva, sábado, na conversa 'Mentiras, culpa da ficção', que uniu os dois escritores paulistanos sem exagero, o ponto alto dos dois primeiros dias de eventos da Tarrafa.

Entre provocações explícitas e conceituações radicais, no papo pôde-se traçar o retrato nítido de um par de autores que não abaixam a cabeça para ninguém.

O movimento dos outros escritores para me isolar é forte diz Mirisola, 43 anos, fazendo trocadilho com seu sobrenome e sua fama de radical. O problema é que não conseguem contestar meus argumentos e aí partem para a porrada. Tudo bem, eu não tenho mesmo vocação para despachante, para ser simpático, lidar com os outros. Eu me tornei escritor justamente para não ter que fazer acordos com ninguém.

A situação com Mutarelli é outra. Depois do sucesso cult da adaptação de seu romance O cheiro do ralo, aos 45 anos o escritor tem desfrutado de um namoro com o círculo das cabeças iluminadas da nossa (suposta?) inteligentzia. Isso não faz com que ele se sinta mais confortável.

Tenho recebido convites para festas e coisa e tal. Mas sinto que as pessoas se aproximam de escritores como eu para tratá-los como uma atração. Tipo um anão de circo ou um macaco. Eles até te deixam sentar à mesa para jantar, mas ficam de olho para ver se você não vai fazer sujeira no tapete dispara o autor de 10 graphic novels e quatro romances.

Verve afiada

Em pessoa, Marcelo Mirisola, que prepara-se para lançar em breve um novo livro (Memórias de uma sauna finlandesa), é risonho e bem-humorado. Mas não esconde a verve afiada demonstrada em seus textos, ditos provocadores por uns, escatológicos por outros ou apenas intragáveis por terceiros. Suas declarações igualmente agudas demonstram sua maneira peculiar de enxergar o oficio da literatura.

Ser escritor é uma profissão para quem gosta de brigar consigo mesmo. E às vezes você acaba apanhando. Eu acredito no poder do não . Ninguém aqui deve virar escritor para concordar com o resto do mundo. Não acredito, por exemplo, que literatura possa salvar a vida de alguém, ou resgatar alguém da marginalidade. É irresponsabilidade dizer isso. Dostoiévski não salva ninguém. Corre o risco até de a vida do cara piorar depois de lê-lo.

O ficcionista reconhece que não tem muito a ganhar com declarações como essas. Pelo contrário.

Sei que fechei um monte de portas com essas posturas. Em Paraty, por exemplo, não piso mais diz, referindo-se à Festa Literária que agita a cidade anualmente. Escrevi uma reportagem sobre a Flip contestando o fato de que todo mundo no evento fatura com os escritores, menos os próprios escritores. Ninguém gostou! É um negócio ridículo. Eu tenho 10 livros publicados e recebo R$ 60 por mês de direitos autorais. Como se vive assim?

Mutarelli, mais reservado e reflexivo, está diversificando suas atividades, talvez procurando fontes de renda mais compensatórias. Depois de atuar em O cheiro do ralo sob a direção de Heitor Dhalia, prepara-se para aparecer na tela mais uma vez, agora como protagonista. Faz o papel principal em O natimorto, que Paulo Machline adaptou do romance homônimo (o livro, de 2008, será relançado para aproveitar a estreia do longa no próximo Festival do Rio). Como de costume, é um tipo esquisitão, que fuma um maço de cigarros por dia e coleciona, como num macabro baralho de tarô, as imagens de deformações contidas nos avisos do Ministério da Saúde sobre os males do fumo.

Mutarelli arranca risos ao explicar seu envolvimento com o filme:

O Matheus Mastercard é quem ia fazer o papel. Sei que o nome dele não é esse, mas não consigo pronunciar o nome certo conta sobre o ator Matheus Nachtergaele. E era fundamental para o filme que o papel fosse feito por um sujeito feio. Então me candidatei ao posto, fiz um teste e fui aprovado. Foi difícil para mim, um não-ator, trabalhar com profissionais como a Simone Spoladore. Gostei do resultado, achei que Machline foi fiel ao livro, mesmo com todas as mudanças. Sei que fazer um roteiro baseado num romance é como praticar uma autópsia no livro, por isso me desapego de minhas obras assim que cedo os direitos.

Internação compulsória

E quanto aos causos citados no início da reportagem? É Mutarelli quem começa a rememorar:

Uma vez participei de um evento no Sul com o Marcatti (autor de quadrinhos) e, em vez de nos hospedarem num hotel, nos botaram em uma clinica de desintoxicação diz o escritor, ele mesmo tendo sido internado devido a problemas como depressão. Mas foi ótimo, a comida era legal, o lugar, bonito...

Mirisola saca outra, provocando mais risos:

Eu iria dar uma entrevista para um programa de TV em Santa Catarina e, chegando lá, o entrevistador confessou que não tinha lido meu livro... mas que ia dar um jeitinho. Eu arrumei uma cópia, para o sujeito pelo menos folhear diante da câmera. Então começa a entrevista e o cara começa a ler uma entrevista que eu dera para uma revista, publicada algumas semanas antes, repetindo as mesmas perguntas! Ai eu não agüentei, levantei e fui embora.