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Dois textos inéditos de Emil Cioran revelam fase obscura do escritor

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Bolívar Torres, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Tomarei contra minha alma o partido da desesperança e me tornarei o inimigo de mim mesmo . Como bem indica esta epígrafe de O breviário de decomposição, um de seus livros mais famosos, o escritor romeno de língua francesa Emil Cioran, morto em 1995 aos 84 anos, é lembrado na história da literatura principalmente por seu distanciamento desapaixonado, sua desconfiança por qualquer filosofia reveladora. Durante um curto período de sua juventude, porém, o pensador outsider e independente, famoso por seu ceticismo, abraçou com ardor os ascendentes movimentos fascistas europeus.

Recém-lançados na França, país onde viveu a maior parte de sua vida, dois textos inéditos do autor recuperam um período obscuro, que contradiz o resto de sua obra ao mesmo tempo que a ilumina. Escritos respectivamente em 1936 e 1941, Transfiguration de la Roumanie e De la France pertencem à fase romena de Cioran. O primeiro anuncia o exílio de sua terra natal e denuncia sua simpatia pelos ideais nazistas, os quais mais tarde iria renegar; o segundo explica sua adoção do idioma francês.

Depois de sua morte, Cioran ficou numa espécie de purgatório, muito em função de suas posições políticas do passado, que o perseguiram durante toda a vida diz Laurence Tacou, diretora da L'Herne, editora prestigiada pelo trabalho com autores desconhecidos ou malditos, e responsável pelo lançamento dos livros. Na França, a associação com o nazismo manchou para sempre alguns artistas. O assunto tornou-se tabu e o debate foi confiscado: havia aqueles do lado bom da história e aqueles do lado ruim. Agora, porém, acredito que se possa ler os textos com mais lucidez. Fiquei feliz com a maneira como a imprensa recebeu os livros. Os artigos dos jornais mostraram uma análise complexa, abordando a questão com mais nuances.

Os leitores de Cioran, acostumados ao ceticismo de livros como La tentation d' exister (A tentação de existir) e De l'inconvénient d'être né (A inconveniência de nascer), com certeza irão se supreender. La transfiguration de la Roumanie mostra um escritor irreconhecível, que troca o niilismo pela exaltação fascista, disposta a limpar o mundo. O estilo seco e desencarnado dá lugar a uma vibração formal que deve mais à sensualidade da língua balcânica do que ao enfado francês.

As ideias radicais do livro causam ainda mais estranheza se levarmos em consideração que, até 1933, num momento em que a juventude romena buscava respostas à esquerda ou à direita, Cioran recusou-se a tomar partido. Naquele ano, porém, viveu uma conversão fulminante, que o transformou num defensor do regime nazista e da Guarda de Ferro, um movimento nacionalista formado por um bando de desesperados no coração dos Bálcãs . Muitos o acusaram de ter camuflado esta associação, definida pelo autor como pecados de juventude . Mas o fato é que, em 1990, o próprio Cioran resolveu republicar o livro em sua terra natal, com algumas poucas alterações.

A conversão representou para ele algo como acabou o pensamento, vamos passar à ação avalia Laurence. Mais tarde, teve vergonha dessas ideias, que lhe vieram de forma muito rápida e violenta.

Escrito cinco anos mais tarde, De la France surge como uma espécie de antídoto aos excessos anteriores. Vacinado contra a sedução das ideologias, doutrinas e farsas sangrentas , Cioran busca a neutralidade no cansaço da cultura francesa, que considera decadente. É nesta nação de marivaudages infinitas, onde as ideias se diluem na superficialidade da forma, do detalhe e do ornamento, que o autor encontrará o abrigo perfeito para sua nova filosofia: recusar as verdades irrespiráveis em favor da beleza e ilusão da arte. Com isso, aniquila qualquer esforço grandiloquente ou monumental ( As civilizações começam em epopéias e terminam em elegias ).

Repleto de aforismos deliciosos ( O universo é uma farsa do espírito , ou ainda: A decadência não é outra coisa do que a incapacidade de continuar criando em um círculo de valores que nos define ) trata-se de um tratado livre, bem ao estilo do Cioran que conhecemos: nenhuma preocupação com método ou consistência filosófica (o próprio escritor se dizia um piadista mais do que um filósofo). Não por acaso, seu estilo também se transforma. A sintaxe é simplificada, como se ele quisesse adaptá-la aos poucos aos caprichos da língua francesa, que em breve iria adotar.

O apodrecimento lento da cultura francesa o fascinava diz Laurence. Na Romênia, um país que nunca teve auge nem decadência, ele partiu para a ação e se arrependeu. A França, por outro lado, é o lugar do tédio, onde tudo já foi criado e tudo é conhecido, e onde a ação não pode mais acontecer. Essa morte lenta e refinada do país cabia muito bem na sua filosofia.