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Entre ficções e antologias, Flávio Moreira da Costa recria a si mesmo

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Alvaro Costa e Silva e Alexandre Werneck, JB Online

RIO - João do Silêncio tira os óculos de sol. Por trás deles, outros óculos, estes de grau. E mais atrás ainda, olhos fundos, emoldurados por olheiras, apertam-se diante do sol de Copacabana. Flávio Moreira da Costa acordou às 4h30. Sem despertador. Só gana. De ler. Sentou-se e leu até as 7h Para mim, isso também é trabalhar , diz o escritor, que labuta nas letras há mais de quatro décadas. Depois, dormiu um pouco e foi escrever. Tirou uma face, vestiu outra. Mas é o mesmo. Silêncio é Moreira da Costa. E não é. O personagem, criado para a Trilogia de Aldara, iniciada com O país dos ponteiros desencontrados, em 2004, e continuado com Livramento, de 2006, retorna agora em Alma-de -gato, o ponto final da trilogia (os três pela Agir). Ao mesmo tempo, Silêncio se encontra na linha divisória das duas personalidades de seu criador, entre o ficcionista (celebrado e premiado, duas vezes com o Jabuti) e o antologista gênero do qual se tornou praticamente sinônimo no Brasil (não perca a conta: são 27 títulos nas costas no último registro, o mais recente deles resenhado nesta edição). Ou seja, o personagem é uma espécie de alter ego do autor. Mas mais alter, do que ego.

Coloquei os óculos escuros para escondê-lo. É meu outro lado. Um lado literário, mais autor diz o escritor gaúcho de 66 anos, em um boteco na praia de Copacana, seu microcosmo particular, de onde pouco sai para andar pela cidade. Ele diz que não gosta de andar pelo Centro. Se sentiria outro.

O que ele já se sente mesmo. Disfarçado de Silêncio, então, Moreira da Costa vira gigante. E confuso. Magistralmente confuso. Assim como os outros dois títulos, Alma é narrado por Silêncio. E por silêncios. E com vazios produzidos pela multiplicação de vozes. O livro é um diário no qual entram as anotações cotidianas do próprio autor, despidas das referências ao mundo real somado a um ensaio, a um manifesto, a uma narrativa épica (a saga de Jasão) com um corte seco da lenda grega para o personagem indo comer um cabrito na Lapa e encontrando o mestre Nelson Cavaquinho (sobre o qual Moreira da Costa cometeu um dos Perfis do Rio, em 2000, obra que ele está agora reescrevendo). E vão ainda na obra poemas, traduções (atribuídas a Silêncio, mas feitas, obviamente, por Moreira da Costa) e citações (inclusive a obras escritas pelo próprio Silêncio, como seu Tratado geral das paixões ou suas Obras completas. Tudo formando um verdadeiro emaranhado.

Descobri no cinema essa coisa de usar vários elementos, várias vozes. É como se eu fosse um editor, um montador, um antologista de mim mesmo diz o autor, cujo primeiro livro publicado, em 1966, foi Cinema moderno cinema novo e que é também crítico, cineasta e roteirista e tem até algumas participações como ator.

Montador, então, ele colou pedaços. Em um processo que para ele está menos para Tarantino como quase dita a vulgata pós-moderna , ou seja, para um universo que se alimenta da ação de outros universos, e mais para Godard, o da busca de uma poética pela fuga do realismo.

O que me preocupa são a linguagem e a estrutura. A ação é a coisa menos importante. Este livro vai contra a literatura realista. Nisso o Borges me influenciou muito: a literatura nasce da literatura, não nasce da realidade. E há hoje uma enorme pretensão de captar a realidade. Fazia sentido no século 19, hoje não.

Corte para o personagem antologista: afinal, Moreira da Costa é justamente um analista, um observador de textos. Ele já publicou antologias para cujas feituras freqüentou bibliotecas e colecionou coleções de outros países Do conto gaúcho (1970, a primeira), d'Os cem melhores contos de humor (2001), d'As cem melhores histórias eróticas da literatura universal (2003), até d'Os melhores contos bíblicos (2006). As quase três dezenas de antologias fazem pensar que um dia alguém terá que fazer um livro As cem melhores antologias de Flávio Moreira da Costa. Mas todo esse painel faz perguntar como um lado e outro conduzem a criação do autor. O óbvio seria imaginar que se debruçar sobre tantos textos faz dele um autor mais referencial, mais influenciado. Ele prefere recusar o óbvio:

O que isso produziu foi que eu quisesse ter uma abordagem autoral paras as antologias.

Fusão da recusa para a ficção: mas se não se influencia tanto tematicamente ou em termos poéticos, sem dúvida alguma o volume de textos que ele lê o pressiona no sentido dessa multiplicidade da qual Alma-de-gato parece ser quase um manifesto. Não parece ser à toa, então, que sua trilogia traga dois romances e um o segundo livro de poemas.

A idéia era fazer uma trilogia conceitual, temática, e não seqüencial. Era para dar uma unidade na descontinuidade.

Mas poesia?

É algo que sempre disfarcei dentro da prosa. Há sempre um personagem que declama, que fala algo, que poetiza [como João do Silêncio em Alma].

Tudo isso, segundo o autor, porque é preciso se desafiar, buscar a fuga do puramente narrativo:

Começo um livro e não sei como ele acaba. Se souber, não escrevo.

Paradeiro desconhecido

João do Silêncio tem uma gênese curiosa. Ele é... francês. Surgiu quando o autor passou um período de dois meses na cidade de Marnay sur Seine, a 110km de Paris, onde viveu como escritor-residente no Centre d'Art Marnay Art Centre, o Camac, uma comunidade artística internacional que já teve em suas casas nomes que vão de Duke Ellington à artista plástica Sophie Calle. Lá, remexendo baús, criou Silêncio, o personagem cujo paradeiro é desconhecido e que, no romance, é objeto de busca de informações sobre seu paradeiro. O que conduz para o uso que o autor tem feito de seu personagem a metáfora de alguém que tem que ser encontrado por alguém que se confessa ele próprio é sugestiva.

É um cara que aprendeu a escrever e, logo depois, e por isso, não escreve mais. Eu aprendi e desaprendi. E preciso desaprender sempre.

Soa até como anedota, ao se imaginar que Alma-de-gato não foi para a editora sem, no mínimo, sete reescritas. O que significa que Moreira da Costa se debruça sobre o texto, o relê todo e escreve um outro, novo, do que sobra de sua sessão de corte e colagem. É hábito de profissão. O equilibrista no arame farpado, romance de 2007 que se interpôs à seqüência da trilogia, teve 15 versões. O livro, depois de ser recusado por sete editoras e a cada recusa, veio uma reescrita , foi finalmente publicado em 1997. Ganhou o Jabuti; o Machado de Assis (da Biblioteca Nacional); o prêmio da União Brasileira de Escritores e foi 2º lugar no Prêmio Nestlé de Literatura.

Eu era contra prêmios até começar a ganhar diz ele, sorriso de canto de boca, a mostrar apenas, e ironicamente, parte da dentição, que perdeu o Jabuti por O país. Hoje vejo como uma forma de apresentar mais o livro.

É fácil ouvir de Flávio Moreira da Costa uma frase aparentemente simples, mas que se revela mais complexa, elaborada do que se pensa à primeira vista. Por exemplo, falando de certos clichês literários, como as idéias de transgressão, ousadia etc. Ele:

Não gosto de literatura bem comportada, sem risco.

Resposta padrão de autor? Não, se entra em cena o jogo entre risco calculado bastante fácil de imaginar quando se pensa em todo volume de vozes que ele edita e o que ele chama de uma escrita jazzística :

O trabalho tem um lado racional, mas algo muito não racional também. É algo que comecei a sentir em Nem todo canário é belga [de 1998, livro de contos, também vencedor do Jabuti], que une o realista com o fantasioso. Ali entendi que precisava soltar o texto de forma totalmente livre. Foi quando vi que estava surgindo uma voz própria em mim. Embora eu seja muito racional, resolvi apostar ali mais na minha intuição. O grande trunfo disso pra mim é soltar essa intuição.

Intuição, liberdade, errância, fuga da racionalide, fuga da ação. Mistério: como pode essa fórmula conviver com mais uma das facetas do autor, o de romancista policial com obras como Avenida Atlântica (1992) ou Modelo para morrer (1999, finalista do Jabuti), um gênero que depende justamente de sua narratividade, de coisas acontecendo?

O gênero policial, sem querer menosprezar, porque gosto muito, é algo para quando estou muito cansado, sem vontade de pensar muito.

Mas ele defende sua imagem de ousadia apostando na metalinguagem:

Mas se você reparar, em Modelo para morrer há ação, mas ao mesmo tempo, a idéia ali é brincar o tempo todo com o gênero. É paródico. Mesmo quando faço algo tradicional, tento fazer uma brincadeira de gênero.