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A última noite do mestre da ironia

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Alexandre Werneck, Agência JB

PARIS - Quis a ironia da vida que o derradeiro filme de Robert Altman, 'A Prairie Home Companion', fosse chamado no Brasil de 'A última noite'. Quis o próprio diretor americano, morto na noite desta segunda-feira, aos 81 anos, em um hospital na Los Angeles em que morava, de causa desconhecida até o fechamento desta matéria, que esse mesmo filme contasse a história de um espetáculo que está chegando a sua última apresentação. Ironia.

Mais uma. Era a ferramenta de trabalho de Altman. Diferentemente de boa parte de seus compatriotas, o diretor não fez o cinema mais fácil, mais confortável, para ninguém. Seus filmes eram ótimos de ver porque eram claramente difíceis de fazer. E claramente desafiadores para quem os vê porque é difícil não se ver ironizado na tela.

Administrador de elencos gigantescos, de inúmeras situações, de roteiros de múltiplas camadas, de planos-seqüência - como o longuíssimo da abertura de 'O jogador' (1992) -, Altman parecia detestar o mundo que amava tanto, sobretudo a parcela que conhecia melhor, a América: não havia filme seu em que tudo na tela não fosse objeto de ironia profunda.

Estava sempre na tela a América que manda jovens para além-mar para lutar guerras inglórias e com as quais eles nada tinham a ver, como a da Coréia, em M.A.S.H (1970), sua obra-prima de sarcasmo; a América que filma sem piedade uma humanidade sem piedade de 'O jogador'; a América que cria mitos e os destrói de 'Nashville' (1980); A América de pequenas histórias e grandes loucuras de 'Short cuts - Cenas da vida' (1993). Até um herói da infância americana, 'Popeye' (1980), o mestre usou para fazer ironia de uma nação sedenta de mitos e plena de famílias disfuncionais.

E o próprio filme, feito por encomenda num esquema de grande estúdio, acabou sendo mais uma ironia sua com o 'establishment' hollywoodyano: a pouca bilheteria acabou provando que ele fez mais o filme que queria do que o que o público queria ver - e olha que o filme foi reeditado pelo estúdio!

E essa mesma América deu ao cineasta cinco indicações ao Oscar de diretor - 'M.A.S.H.', 'Nashville' (na qual foi indicado também, como produtor), 'O jogador', 'Short cuts' e a última em 2001, com o maravilhoso 'Assassinato em Gosford Park' (também como produtor) -, mas só lhe deu um, honorário, no ano passado.

É recordista de indicações sem ganhar nada ao lado de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese, Clarence Brown e King Vidor. Ironia: Só Scorsese pode bater o recorde agora. Talvez por isso mesmo Altman tenha declarado, ao receber o prêmio da Academia de Artes e Ciencias Cinematográficas, estuazinha careca nas mãos, que "sempre fez o filme que quis" e "Nenhum outro cineasta conseguiu se movimentar melhor".

Piloto de bombardeio na Segunda Guerra, formado em engenharia, Altman foi para o cinema porque acabou tendo que fazer filmes industriais, operações técnicas, somente. Acabou agradando quem entendia do assunto e debutando em 1957, com 'Os delinqüentes'.

Há dois tipos de cineasta no mundo: os que filmam como se fizessem o último filme (como se fosse preciso mudar tudo) e os que filmam como se fizessem o segundo filme (como se não se pudesse mudar nada). Pois Altman filmava como se fizesse o primeiro, como se seu filme tivesse que dar origem ao cinema, como se as situações na tela tivessem que reestruturar o mundo. "Um filme realmente bom faz as pessoas dizerem: 'Eu não sei do que ele está falando, mas eu realmente gostei de ele ter falado'", disse certa vez.

Seu cinema era de microcosmos. Ele filmava mundos, o da moda ('Prêt-à-porter', 1994), o da música country ('Nasville'), o da aristrocracia inglesa ('Gosford Park'), o do jazz e dos submundos da cidade na qual veio ao mundo, em 1925 ('Kansas City', 1996, que lhe rendeu o prêmio de direção Cannes, onde ganhara a Palma de Ouro com 'M.A.S.H'). Desde então enjaulou microcosmos nos limites do plano mais de 60 vezes, entre filmes e episódios de séries de TV.

'A última noite', exibido no último Festival do Rio e lançado comercialmente há duas semanas no Brasil, é um Altman como Altman sempre foi: um