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Ambrosia de Portugal: chamada de obra-prima em Cannes, experiência entre musical, comédia e documentário mostra ousadia do cinema luso

Divulgação -
No filme "A fábrica de nada", vencedor do Prêmio da Crítica em Cannes, trabalhadores são obrigados a ficar em seus postos sem fazer nada, até se resolver um impasse
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Quinta-feira agora será dia de Cosme e Damião e, fazendo jus à açucarada tradição dos santos, um doce típico de Portugal será ofertado aos cinéfilos cariocas pelo circuito exibidor nacional. Laureado no Festival de Cannes de 2017 com o Prêmio da Crítica, da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), “A fábrica de nada” enfim estreia no Brasil. Usa-se o termo “obra-prima”, com muita frequência para definir este exercício de ativismo político do cineasta lisboeta Pedro Pinho, de 41 anos. Trata-se de uma produção de €600 mil com quase três horas de duração, misturando coreografia de musical (com empilhadeiras, guinchos e caixotes), drama de realismo social, comédia e reflexões documentais. Na Croisette, a plateia veio abaixo, numa ovação, quando um dos personagens do longametragem desabafa: “O mundo não se divide mais entre Direita e Esquerda, mas sim entre aqueles que se submetem e aqueles dispostos a abrir mão de seus sonhos, dos telefones celulares, das viagens à Lua”.

Na trama, um grupo de operários se encrespa com a administração de sua indústria (de elevadores) ao perceber que alguém da gerência está roubando máquinas e matérias-primas.

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No filme "A fábrica de nada", vencedor do Prêmio da Crítica em Cannes, trabalhadores são obrigados a ficar em seus postos sem fazer nada, até se resolver um impasse (Foto: Divulgação)

Incomodados, os trabalhadores fazem um levante, que tem um ônus: todos serão obrigados a permanecer em seus postos, sem nada para fazer, enquanto prosseguem as negociações para uma demissão coletiva. No ócio, acontecimentos e ritos nada usuais tomam conta do lugar, gerando sequências hilárias e muita perplexidade diante de inquietações éticas.

Pedro Pinho, que visitou o Brasil há cerca de uma semana, conversou com o JB sobre os saldos estéticos de seu filme, que fez dele uma das maiores promessas do cinema do Velho Mundo.

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Pedro Pinho utiliza o cinema como plataforma para ativismo político (Foto: Divulgação)

JB: Críticos do mundo inteiro saudaram “A fábrica de nada” como obra-prima. Mas como foi a relação do público português com um lme de 177 minutos que mistura os mais variados gêneros para retratar as falências europeias?

PEDRO PINHO: Fizemos cerca de 10 mil espectadores, o que é um sucesso para o padrão do circuito português, sobretudo na linha dos filmes de autor e, sobretudo, se você avaliar nossa duração. Existem 10 milhões de Portugais no meu país, cada um com uma necessidade e com uma experiência pessoal muito particular com o mundo operário. Do momento em que nós escrevemos o roteiro de “A fábrica de nada” até esta semana, em que o meu filme estreia aí no Brasil, uma série de problemas de desajuste social que estavam acontecendo em Portugal se agravaram. E não foi só no meu país. Todas as aberrações políticas que ganharam peso nos últimos anos, como Donald Trump e Bolsonaro, tiveram suas dimensões ampliadas. Daí eu ter uma história em que o crescimento da economia gera loucura coletiva.

O marxismo entra de que maneira nesta reexão sobre o mundo fabril? 

Entendo “A fábrica de nada” como uma máquina de lavar na qual entra tudo o que está sujo na sociedade e sai algo, se que é sai, mais compreensível para o entendimento. Mas essa limpeza não é um exercício de marxismo, e nem poderia, porque o filme desvela nossa orfandade em relação às grandes narrativas políticas dos séculos XIX e XX, onde entram não apenas Karl Marx, mas o anarquismo e outras correntes. Essas narrativas já não trazem respostas acerca dos desafios da exclusão que vivemos hoje.

Como foi a concepção de roteiro de uma narrativa que vai do musical ao documentário?

Existe uma analogia do filme entre a situação dos operários desmobilizados pela falência de sua fábrica e a crise criativa de um cineasta que está a fazer filmes. Existe um conflito interior em todos esses personagens, esses atores sociais. Esse conflito se reflete na minha vontade em experimentar diante da inabilidade que temos de lidar com a realidade à nossa volta. Daí a necessidade de se produzir um Frankenstein, um filme que está em permanente mudança, em metamorfose formal, como o real.

O que é o “nada” que seus operários produzem?

Essa palavra diz respeito à sanção que obriga os trabalhadores a ficarem na fábrica mesmo sem trabalho a fazer. É uma referência à punição simbólica que um operário sofre diante da ausência de produção, numa realidade laboral que ainda obedece a conceitos do século XIX.

Como é que foi seu método de trabalho com “não atores”?

Tudo o que se ouve no filme é ficcional, pois cada diálogo estava escrito, sem improviso no texto. O que eu fiz foi buscar pessoas sem experiências profissionais, entre eles um cantor de punk rock, para gerar uma ponte entre a realidade urbana das ruas e das fábricas de Portugal. Ninguém jamais leu o roteiro. O que eu fiz foi dar um briefing da trama para cada um dos atores, explicando como deveriam ser os personagens. Mas ninguém sabia como seria o personagem do outro, de modo a gerar um rodízio de surpresas na filmagem.

Como você avalia o atual sistema de produção cinematográco de Portugal?

Como ele viabiliza projetos de risco como “A fábrica de nada”? Como Portugal não tem um mercado de vulto industrial no cinema, capaz de produzir blockbusters, como os americanos fazem, mais vale para nossos diretores a licença para poder experimentar. Nosso sistema de financiamento concorda com isso e dá liberdade total aos cineastas para criar.

Seu próximo projeto como diretor foi batizado em referência a uma canção do Tom Zé, “O riso e a faca”. Que enredo ele trará?

Esse é um título provisório. É um projeto que se passa entre a Guiné Bissau e a Mauritânia, envolvendo três personagens, entre eles um engenheiro.

O QUE ESTÁ POR VIR

O que Portugal tem de melhor em sua produção para estrear:

“AS FILHAS DO FOGO” (Vitalina Varela): Mais estudado e cultuado diretor de Portugal, dos anos 2000 para cá, Pedro Costa usa imigrantes africanos para criar uma narrativa sobre o desterro de uma mulher longe de suas raízes.

“AMOR FATI”: Diretora de “Ama-San” (2016) e do memorável “No escuro do cinema descalço os sapatos” (2006), Cláudia Varejão prepara um novo longa que se estrutura a partir de 12 retratos. Cada retrato é composto por duas ou mais personagens que, sicamente, se assemelham. São retratos de famílias, de casais, amigos, irmãos ou animal e o seu dono.

“DIAMANTINO”: Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt venceram a Semana dos Realizadores de Cannes com esta coprodução com o Brasil sobre um jogador de futebol, com ecos de Cristiano Ronaldo, cuja vaidade o leva a uma autodescoberta.

“PEREGRINAÇÃO”: Candidato de Portugal ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro narra uma trama ambientada em 1537, quando Fernão Mendes Pinto partiu para as Índias em busca de fama e fortuna. A direção é de João Botelho, realizador do sucesso de bilheteria “Os Maias”.

*Especial para o JB. Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Pedro Pinho utiliza o cinema como plataforma para ativismo político