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Literatura: Mulheres militantes, a força da retaguarda da ALN

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Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), De Maria Cláudia Badan Ribeiro Alameda Casa Editorial - 572 págs. R$ 90
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O livro “Mulheres na luta armada, protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional”, de Maria Cláudia Badan Ribeiro, em suas últimas páginas, em anexo, traz cenas violentas da tortura sofrida por Zilda Paula Xavier Pereira no Batalhão Militar da Barão de Mesquita e num quartel no Leblon até sua corajosa fuga do Pinel, após ter se fingido de louca.Essa e a descrição da tortura sofrida por Maria da Conceição Sarmento da Paz, mãe de Carlos Eugênio Sarmento da Paz, o “Comandante Clemente”, são as poucas vezes em que a prática de horror da ditadura militar, como eletrochoques, pau de arara e cadeira do dragão, aprendida na escola de torturadores do Panamá, se faz presente no alentado texto de mais de 500 páginas,publicado pela editora Alameda.

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Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), De Maria Cláudia Badan Ribeiro Alameda Casa Editorial - 572 págs. R$ 90 (Foto: Reprodução)

Por isso, não há por que se temer a leitura do livro. A tese de doutorado em História Social,defendida por Maria Cláudia na USP em agosto de 2011 e que posteriormente seria ampliada,constitui uma narrativa imprescindível, essencial e necessária para todos os brasileiros e as brasileiras que quiserem entender melhor oque levou inúmeras mulheres a se engajarem na ALN e o que se passou nos subterrâneos dos chamados “anos de chumbo”.

Com base em sua pesquisa, Maria Cláudia realizou um trabalho de cunho histórico e sociológico aprofundado sobre os bastidores da ALN, abarcando todos os aspectos das atividades das mulheres que atuaram no apoio logístico aos companheiros e companheiras que se dedicaram aos Grupos Táticos Armados (GTA), ou seja, à ação de vanguarda ou guerrilha propriamente dita dos pegaram em armas, assaltaram bancos, realizaram expropriações, sequestraram embaixadores.

Para oferecer ao leitor um quadro o mais completo possível da prática das militantes que atuavam na retaguarda, reduzindo o risco de vidados que estavam no front da guerra contra os militares, a pesquisadora entrevistou mais de 70 mulheres dos mais variados níveis econômicos e escolares e com vivências também completamente diversas. O que as unia era o ideal de acabar com a ditadura militar e lutar por um Brasil mais justo, com direitos humanos em vigor e mais igualitário do ponto de vista social. As militantes compartilhavam um verdadeiro amor ou admiração por Carlos Marighella, homem que sabia dar valor à participação feminina em sua organização. Grande contador de histórias, suave de modos, o “Preto”, como era chamado por seus comandados, rechaçou por completo o autoritarismo e a estruturado Partido Comunista Brasileiro (PCB) de poder centralizado ou decima para baixo. Além de ser antissexista, Marighella era democrata esempre que se encontrava com os membros da ALN conversava muito nas reuniões, expondo seus pontos de vista e querendo que todos participassem das decisões. Ou seja, como arma Carlos Eugênio da Paz no livro, o PCB tinha a estrutura de poder vertical, enquanto que na ALN o poder era horizontal. O outro principal dirigente ou cabeça da organização, Joaquim Câmara Ferreira,o “Toledo”, também era considerado uma pessoa gentil, educada e até mesmo doce.

Depoimentos costurados com habilidade de tecelã

O mais surpreendente na obra de Maria Cláudia Badan Ribeiro é a forma como costurou os depoimentos. Apesar de seu tamanho, a tessitura do livro faz com que a narrativa nunca se torne aborrecida. Pelo contrário, é extremante ágil, como se transcorresse diante de nossa mente uma sucessão de causos interessantíssimos, a maioria com informações que nunca antes haviam sido divulgadas. Mas o que faziam as mulheres que cuidaram do apoio logístico d aALN? Atuaram no movimento estudantil, operário e camponês. Faziam de tudo: cuidavam do abrigo e dos alojamentos, do mimeógrafo, das publicações, panfletos, jornais, das atividades culturais, como cursos, debates, aulas, cinema, teatro, da alfabetização seguindo o modelo de Paulo Freire, da comida, roupas, angariavam dinheiro, organizavam fugas para o exterior,obtenção de passaportes falsos, levantamentos de lugares, cobertura de pontos, trocas de mensagens,entre outras ações necessárias para manter a ALN funcionando, viva. Carlos Eugênio crê que para cada militante armado, pelo menos cinco eram necessários a m de dar cobertura aos que se encontravam na vanguarda, não havendo trabalhando menos ou mais importante.

O livro vai indo gradativamente. Começa com o ambiente familiar de cada militante, a infância, a adolescência. A formação dos pais. Pais que também eram politizados, que haviam pertencido ao Partidão. Pais, tios e parentes com grandes bibliotecas. Pais muito simples, ignorantes,que não sabiam ler nem escrever. Pais de esquerda, pais de direita. Mães conscientes,também atuantes, mães donas de casa. Depois Maria Cláudia explica as razões do engajamento.Como as mulheres haviam se aproximado da ALN. Por envolvimento direto com Marighela e outros dirigentes, através de esposos, namorados e amigos que já se encontravam na luta, ou por conta própria, de forma independente, descobrindo a organização em bancos escolares ou universitários ou na Igreja, já que a Igreja, seja a católica, a evangélica ou a presbiteriana,também foi muito atuante na resistência contra a ditadura.

Da família e do engajamento, Maria Cláudia passa para a luta ou guerra propriamente dita.Os riscos. O coração a mil. As quedas. As prisões. O comportamento na tortura. Os que se envergonhavam por achar que tinham dito aos torturadores mais do que deviam. Os que entendiam que num pau de arara tudo é possível acontecer. E que o importante foi ter impedido ao máximo a entrega dos companheiros, seguindo nos interrogatórios as instruções dadas por Marighella em seu livro sobre que comportamento que deveria ser seguido na hipótese de cair,ser aprisionado. Todos os opúsculos e livros de Marighella eram lidos, sendo várias as edições de seu Manual do Guerrilheiro Urbano. Sua palavra, visão de mundo, foi sendo disseminada.

No tocante às prisões, há militantes que eram visitadas pelas famílias e as que foram totalmente rechaçadas, como foi o caso de Diva Burnier, que pertencia a uma conhecida família de militares, simpatizantes da ditadura. Houve famílias que de tão envergonhadas de terem lhas“terroristas” ou subversivas se mudaram de onde moravam há mais de 30 anos. As visitas eram importantes porque davam um novo alento à prisioneira, ajudando-a a se equilibrar emocionalmente,assim como os telefonemas. Era um carinho, um contato com o mundo exterior.Quem se encontrava totalmente isolada, sem apoio dos parentes, corria o risco de entrar em depressão com mais facilidade. Houve quem se suicidasse depois, mesmo já se encontrando em segurança, em casa, devido à experiência traumática na prisão.

Um aspecto importante ressaltado pela historiadora social é o feminismo. As mulheres engajadas na ALN não foram revolucionárias apenas politicamente, foram revolucionárias também no plano pessoal. Era uma época de pôr abaixo tabus, lutar pela liberdade como mulher. As mulheres militantes se negaram a sair da casa paterna casadas, eram donas de sua virgindade e de seu corpo. Amavam quem queriam amar. E se separam, desquitavam, se uniam ou se casavam de novo, às vezes com companheiros de luta para preservá-los ou a si mesmas. Marighella e Joaquim Câmara Ferreira estimulavam as uniões e os casamentos. Muitos -lhos foram concebidos dentro da prisão. Os papéis eram igualitariamente divididos. Homens exerciam papéis de mulheres, cuidando da casa e levando os lhos à escola quando necessário.Enquanto muitas das mulheres exerciam papéis considerados de homens, principalmente as que pegavam em armas ou participavam da direção da organização. O feminismo já estava pegando fogo, mas a ação libertária era quase que intuitiva. Houve quem não se casasse apenas por medo de ficar presa dentro da instituição, sem poder atuar ou estudar.

Difícil foi a reintegração à vida rotineira, fora da prisão ou após o exílio. Houve quem passasse fome, sem ter trabalho ou família para ajudar. A volta ao estudo foi dificultada pela ditadura.A volta ao trabalho também. Foram poucos os casos de mulheres que foram reempregadas em suas velhas funções, como Norma Freire, que voltou a ser empregada como jornalista na Editora Abril. O fato de ser uma presa em situação de condicional e ter que todos os dias assinar documentos na Auditoria Militar complicava o exercício de várias profissões. Mas felizmente muita gente ajudou. Se houve perseguições e bullying em escolas, universidades, trabalhos,também houve uma rede de proteção às chamadas ex-terroristas, que as ajudou a voltar às faculdades ou a trabalhar.

Fato é que se trata de um livro a ser lido atentamente. E que não pode ser resumido aqui, por se tratar de depoimentos de mais de 70 mulheres.Depoimentos candentes, emocionados. Um dos mais emocionantes é o de Maria da Conceição a seu lho Carlos Eugênio. Ela só foi capaz de falar da tortura uma única vez, em Paris. E nunca mais tocou no assunto. Maria, que fez treinamento em Cuba com o pseudônimo de Joana,quando presa e torturada brutalmente – queriam saber onde estava o seu filho - perdeu os dentes, ficou com os pés atroados, as mãos retorcidas. Tinha, como disse uma companheira, a imagem física de quem havia levado uma grande surra. Mas nunca perdeu a alegria de viver. Isso é que foi espantoso. Tive o prazer de conhecer Maria. E ela mantinha esta alegria anos após a anistia. Assim como Carlos Eugênio, que ao voltar do exílio na França sobreviveu dando aulas de música às crianças.

Entre as mulheres ouvidas por Maria Claudia, pessoalmente ou através de e.mail: Maria Lygia Quartim de Moraes, Albertina Costa, Robêni Baptista da Costa, Vilma Ary, Maria Aparecida Boccega, Maria Aparecida Santos, Guiomar Silva Lopes, Ana de Castro, Marília Guimarães,Ana Bursztyn Miranda e Ilma Noronha.

“Mulheres na luta armada”, enfim, é livro sobre coragem, amizade,generosidade e fraternidade. Um livro imperdível. Que também fala de medo, situações limite e do horror. O horror cometido por guras como Fleury, Brilhante Ustra e Romeu Tuma, entre tantos outros algozes da ditadura, e que torcemos que que enterrado no passado. Para todo o sempre, apesar dos hitleristas de plantão.

*Jornalista e escritora