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Tapa na cara parece ser a modalidade esportiva mais praticada nas favelas

Representante das redes e instituições do Borel estreia coluna no 'JB'

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Chego a esta em um dia chuvoso, com um Rio cinza e mais uma vez, como já é habitual, trânsito caótico em vários pontos da cidade nos desafiando todo o tempo. Sou carioca, favelada, mãe de dois filhos - uma menina de 18 anos e um rapaz de 26 anos, ela estudante e bailarina, com um grande potencial para a fotografia; ele, jornalista e em vias de se tornar cientista político pela Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) - e casada com um serralheiro. 

Nasci em São Cristóvão e fui criada em uma das primeiras favelas a se constituir coletivamente e de forma institucionalizada na década de 50 como União dos Trabalhadores Favelados. Um livro prefaciado por Luis Carlos Prestes, intitulado "As Lutas do Povo do Borel", marca sua trajetória e vocação para a luta e para a transformação de seu duro cotidiano pelo trabalho e pela organização comunitária, impregnada dos ideais comunistas e com o auxílio de um abnegado advogado, o doutor Magarinos Torres Filho, morador a época do Rodo da Usina e vizinho da favela que adotou como causa para a vida, o que lhe custou a perda de alguns ilustres clientes que não queriam como advogado alguém metido com invasores de terras.

O tempo passou, mas a vocação para a luta me contagiou no final da década de 80. Passei pela Agenda Social Rio, movimento criado por Herbert de Sousa, o Betinho, e coordenado pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), onde fui articuladora local por alguns anos pelo movimento de radiodifusão comunitária, integrante da Rede de Rádios do Viva Rio. Fui diretora da Federação das Associações de Rádios Comunitárias do Estado do Rio de Janeiro (Farc), uma das fundadoras da Rádio Grande Tijuca - mais um projeto da Agenda Social Rio -, ajudei a criar um jornal comunitário chamado "Formando Opinião", em parceria com um jornalista amigo e com apoio do Haroldo de Andrade Júnior, o Haroldinho. Todo esse acúmulo me levou às Ciências Sociais, minha grande paixão, e de alguma forma me percebo à despeito do tempo  e do espaço continuando a fazer e escrever as lutas do povo do Borel e, de alguma forma, as da minha cidade. 

Hoje, passados mais de 50 anos, o povo da favela tem ainda que lutar, de forma precária, por acesso aos serviços mais básicos. A urbanização de favelas trouxe uma facilidade ao acesso de algumas áreas antes muito difíceis, e bens de consumo similares aos da área dita formal são cada vez mais frequentadores dos lares nas favelas. Mas uma coisa não mudou: a denominação da favela como aglomerado subnormal, talvez de forma inconsciente, dá ainda hoje à sociedade e ao poder público e seus agentes a ideia de que a favela é o lugar onde aqueles que lá habitam ainda são cidadãos de segunda classe. Ao passar pelo processo de urbanização capitaneado pelo Favela-Bairro, dizia-se a favela parte integrante da cidade, transformado-a em novo bairro. O que de fato não ocorreu, quase 20 anos depois, após intervenções do PAC Favelas, foi outra ação semelhante e muito questionada pelos moradores das favelas pacificadas e estudiosos do tema favela. A promoção destas favelas pacificadas pelo IPP (Instituo Pereira Passos) em bairros, mas como no caso do Favela-Bairro, sem agregar serviços básicos adequados, que de fato aproximassem a realidade da infraestrutura da favela ao do conjunto da cidade.

Com a pacificação a partir de 2008, a ideia de retorno à cidadania plena perdida por dificuldades de acesso aos serviços essenciais, criadas pela presença dos grupos armados nas favelas, como ditava o discurso hegemônico, não chegou. As favelas fazem manifestos, criam Redes de Instituições, como no caso do Borel, para discutir com o Poder Público e seus agentes a escassez de políticas que de fato demonstrem o fim da síndrome do aglomerado subnormal e do cidadão subnormal ou de segunda classe, que do Poder Público recebe o controle das suas atividades cotidianas, uma espécie de aquartelamento do day by day. A arma é presente na vida diária do favelado. Sai a arma do traficante e permanece a arma do Estado. Malcom X diria que isto é viver em um Estado policial nos lugares onde a população é majoritariamente negra ou não branca e pobre, trazendo esta afirmação para a nossa realidade brasileira e carioca.

Cidadãos pacificados pela presença ostensiva da arma e da truculência nos fazem pensar em uma questão de ordem: pacificação para quem e para quê? Muitos são os relatos dos abusos. Tapa na cara parece ser a modalidade esportiva mais praticada nas favelas, com grande possibilidades, pois é quase uma unanimidade, pondo em risco até o amado e onipresente futebol. Talvez com a confirmação do presidente do PSDB Aécio Neves (MG) de que um ex-jogador de voleibol será candidato ao governo do Rio, a vocação para o esporte seja de fato a nossa salvação, ou não. 

"A nossa luta é todo dia, favela não é mercadoria."

* Mônica Francisco é representante das redes e instituições do Borel, coordenadora do grupo Arteiras e licencianda em Ciências Sociais perla Uerj