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A formulação estratégica do Estado

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“As ideias dos economistas e filósofos políticos, tanto quando estão certos como quando estão errados, são muito mais poderosas do que normalmente se imagina. Na verdade, o mundo é governado quase que exclusivamente por elas. Homens práticos, que se julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, geralmente são escravos de algum economista já falecido.” KEYNES, John Maynard, in A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, 1936.

É comum a alegação de que, entre as funções básicas do Estado, não está a interferência na atividade econômica. Ocorre que praticamente todos os países desenvolvidos, em algum momento da história ou do presente, adotaram de forma aberta e escancarada a formulação de planos de inserção do Estado, nos quais aparecem, com todas as letras, opções por setores tidos como fundamentais para a segurança nacional. O elenco de episódios recentes patrocinados pela administração Trump não revela diferença com relação a outros momentos da história norte-americana.

Os gloriosos anos 50 e 60, do século passado, foram marcados pelo início da guerra fria, geraram a criação de agências de desenvolvimento e pesquisa aeroespacial (NASA), O governo norte-americano optou pelo fortalecimento da indústrias siderúrgicas e automobilísticas ao mesmo que tempo que patrocinou inversões pelo Departamento de Estado e de Defesa, no que convencionou-se dizer, depois do famoso discurso de Eisenhower em sua despedida à frente da Presidência, como sendo a criação de um mundo dominado pela lógica do ”complexo industrial militar (defesa norte-americano ) “ .

Mesmo que a retórica de Ronald Reagan, nos anos oitenta, tenha sido voltada ao fortalecimento do mercado e à eliminação dos entraves ao funcionamento pela via da desregulamentação, o que se percebeu, de fato, foi o crescimento em escala nunca vista da interferência do sistema de defesa e segurança nacional em projetos militares, em especial o famoso Projeto Guerra nas Estrelas, programa que foi responsável pela quebra do império soviético.

As administrações da família Bush escancaram a relação de fragilidade norte-americana e a desconfortável dependência da economia frente às fontes não renováveis de petróleo, e levaram seu país a três confrontos e, por conseguinte, à maior crise financeira dos século XX, depois do crash de 1929.

A crise de 2008 destampa a áurea de pureza do capitalismo nativo e, ao gerar um estouro no mercado imobiliário de crédito, obrigou que o Estado agisse, de forma direta, comprando ativos e créditos de empresas automobilísticas, financeiras, bancárias e seguradoras em um volume superior a 8% do PIB.

O tamanho da vulnerabilidade e o grau de exposição da economia de países avançados às flutuações do mercado financeiro e da saúde bancária exigiu a interferência dos bancos centrais de diversos países, em especial Estados Unidos, e outros da Europa, em operações de rescaldos que praticamente desmoronaram o espírito não intervencionista na década anterior.

De fato, os mercados e os reguladores falharam em suas funções básicas.

O Mundo pós-2008

O mundo pós-2008 é marcado por movimentos crescentes de combate à globalização e à integração econômica das economias mais avançadas.

A eleição de Donald Trump é a consequência, e não a causa, do início de uma corrida nacionalista e protecionista no mundo. A dependência da economia norte-americana ao petróleo foi encarada como uma fragilidade e uma ameaça à segurança nacional, razão pela qual subsídios e incentivos foram concedidos em grande escala à produção e exploração do petróleo e gás extraído a partir do xisto e seus correlatos. Da mesma forma, a administração Trump rompe os protocolos internacionais de defesa ao meio ambiente e proteção aos efeitos da poluição e adere ao discurso de incentivos à produção, geração e distribuição de energia originadas de carvão.

O início de uma verdadeira guerra comercial patrocinada pela administração Trump não tem como alvo simplesmente uma defesa de empregos e atividades em solo norte-americano.

O lema de Trump, America, First! - os EUA em primeiro ! -, encarna um nada trivial processo de defesa dos Estados Unidos frente a um ambiente dominado por tecnologias disruptivas focadas na robotização e no uso de inteligência artificial em escala maciça.

Trata-se do movimentos em curso pelo governo da China com base em plano de inserção global conhecido popularmente por Rota da Seda 2050, um conjunto de projetos que, implementados, tendem a mudar as relações de comércio, transporte, logística e integração da Ásia, Europa Oriental, Europa Ocidental e Balcãs, orçados inicialmente em US$10 trilhões somente em recursos voltados para investimentos, o que colocaria a China como a nação líder do mundo no final dos anos 50 deste século, mudando a lógica de influência militar e comercial dos Estados Unidos e fragilizando, de forma definitiva, a economia e a moeda norte-americana.

Em tese, a China tem por estratégia a troca de suas reservas internacionais, referenciadas em dólar, pela compra de ativos reais ao redor do mundo, o que possibilitaria a construção de um mega mercado para seus produtos industriais e mudaria a dinâmica do mercado de inovações e tecnologias relacionadas à produção do conhecimento .

Uma consequência desse movimento, para os Estados Unidos, seria uma oferta maior de dólares, no mercado internacional, em volumes superiores a US$1 trilhão, o que faria com que a taxa de câmbio sofresse forte depreciação, forçando a elevação na taxa de juros, com inevitável contração no nível de gastos e do déficit público.

Em destaque, a possibilidade de oferta crescente de equipamentos e bens chineses de alta complexidade, em grande escala, com elevada especialização, gera a garantia de reposição de peças e equipamentos chineses por um prazo não inferior a um século.

Em adicional, o governo central chinês tem a preocupação sempre manifesta em seus pronunciamentos de criação de mercados “consumidores de trabalhadores chineses”, junto com o amparo ao fomento da indústria tecnológica relacionada à pesquisa aeroespacial, de armamento e de defesa, com ênfase no desenvolvimento da indústria de software e segurança cibernética.

A China é um exemplo de um capitalismo de estado direcionado a um projeto estratégico orientado para a consolidação da hegemonia mundial a longo prazo. Com certeza não é um bom exemplo a ser seguido, em função das especificidades de seu modelo político e a ausência de liberdades individuais, no entanto, devemos acompanhar e analisar em detalhes os desdobramentos das ações em curso no mundo .