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Construção de rodoanel leva expedições científicas à serra da Cantareira

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No início de fevereiro, em uma das expedições semanais dos pesquisadores do Instituto de Botânica às áreas a serem cortadas pelo trecho norte do rodoanel – a estrada de 180 quilômetros (km) de extensão em fase final de construção em torno da Grande São Paulo –, a botânica Cíntia Kameyama reconhece e colhe espécies de plantas provavelmente raras do cerrado que crescem em um campo ao lado de um sítio a seis quilômetros do aeroporto de Guarulhos.

“A estrada vai passar aqui e esta área de mata vai desaparecer”, ela comenta, enquanto separa as plantas colhidas. “O último túnel do rodoanel começa ali”, diz o botânico Paulo Ortiz, apontando para um morro coberto de árvores, entre as quais se destacam as flores coloridas das quaresmeiras.

Logo depois Regina Shirasuna volta de uma caminhada a um aglomerado de árvores carregando uma pá e vários sacos que escondem apenas a raiz das plantas que ela colheu: “Vou replantar ainda hoje”. Em seis meses de trabalho, as equipes de resgate tinham recolhido cerca de 200 plantas e as levado para serem cultivadas no instituto. Das 20 áreas visitadas, algumas eram usadas para desova de cadáveres ou encontros de grupos religiosos, que se reuniam em clareiras da mata para cantar alto e, quando os pesquisadores passavam, cumprimentavam com um “paz, irmão!”.

O trabalho de campo se intensificou em abril, quando outros grupos de botânicos começaram a resgatar bromélias e outras plantas raras penduradas nas árvores das matas a serem suprimidas nas bordas da serra da Cantareira, a maior floresta urbana do país, com 30 km de extensão, em boa parte já ocupada por bairros populares e condomínios luxuosos, na zona norte de São Paulo e em municípios vizinhos.

Ao mesmo tempo, biólogos e veterinários entraram na mata para cortar a vegetação mais baixa e fazer muito barulho para resgatar filhotes e espantar para o alto da serra os que pudessem fugir. Eles trabalhavam com pressa: logo chegariam os tratores para remover a vegetação nativa das áreas que serão tomadas pelas pistas do trecho norte do rodoanel, que terá 44 km de extensão, boa parte em Guarulhos. Em três anos, quando estiver pronto, esse trecho completará o anel viário que deve desviar os caminhões que chegam de outras regiões do país e hoje têm de passar pelas avenidas marginais, dificultando o trânsito dos moradores da Grande São Paulo.

Em consequência das exigências ambientais, impensáveis até há poucas décadas, quando as rodovias se impunham sem questionamentos sobre as florestas do país, provavelmente nunca antes uma estrada foi construída com tantos cuidados – até os engenheiros tiveram de abdicar da autonomia e trabalhar com pesquisadores dos institutos de Botânica e Florestal.

Para complicar, a estrada teria de passar por bairros densamente povoados de São Paulo e Guarulhos e próxima ao Parque Estadual da Cantareira, uma área de preservação de remanescentes de mata atlântica. Com 80 km², o parque abrange quatro municípios – São Paulo, Mairiporã, Caieiras e Guarulhos – e abriga 25% da área original e pelo menos 60% da cobertura vegetal da serra, além de proteger as nascentes que fornecem água para os moradores da metrópole desde o final do século 19.

Desde que começou a ser planejado, há 10 anos, o traçado do trecho norte passou por transformações radicais para reduzir os impactos ambientais – uma das propostas era passar ao norte da serra da Cantareira, não ao sul, como no trajeto aprovado.


Agência Fapesp