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Pesquisa muda diretrizes para tratamento de esclerose sistêmica

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Para melhor avaliar o risco do transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) em pacientes com esclerose sistêmica, uma avaliação cardíaca minuciosa é fundamental, afirmam pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos em artigo publicado na revista The Lancet. Os resultados do estudo devem mudar as diretrizes para o tratamento da doença em todo o mundo.

Também conhecida como esclerodermia, essa enfermidade autoimune afeta progressivamente as células do tecido conjuntivo, podendo causar alterações vasculares e fibrose da pele e de órgãos internos, além de úlceras. O problema é relativamente raro, atingindo uma em cada 50 mil pessoas, mas pode ser fatal quando órgãos como pulmão, coração ou intestino são gravemente comprometidos.

“O tratamento convencional consiste em aplicações mensais de uma droga quimioterápica chamada ciclofosfamida – tóxica para as células do sistema imunológico, especialmente para os linfócitos, os mediadores da doença”, disse Maria Carolina Oliveira, uma das autoras do estudo e pesquisadora do Centro de Terapia Celular (CTC) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP instalado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP).

Mas, de acordo com Oliveira, essa terapia só consegue evitar a progressão da doença em uma pequena parcela de pacientes. Cerca de um terço dos portadores de esclerose sistêmica evolui para um quadro grave e tem indicação para o transplante – ainda considerado tratamento experimental.

“O objetivo é zerar o funcionamento do sistema imunológico para que ele pare de agredir as células do próprio organismo. Para isso, aplicamos uma quimioterapia agressiva, com doses altas de ciclofosfamida associadas a outra droga chamada globulina antilinfocitária”, explicou Oliveira.

Antes do procedimento, células-tronco da medula óssea do próprio paciente são coletadas e congeladas. Após a quimioterapia, esse material é reinfundido no organismo para que a produção de células de defesa seja reiniciada.

Esse tipo de abordagem terapêutica também tem sido usado para o tratamento de alguns tipos de câncer, como linfoma, e outras doenças autoimunes, entre elas o diabetes tipo 1 (leia mais emagencia.fapesp.br/16321).

“Normalmente, a mortalidade associada a esse tipo de transplante é de 3% a 5%. Mas, no caso de portadores de esclerose sistêmica, ela é muito maior, podendo chegar perto de 20% em alguns centros. Um dos objetivos de nosso estudo era descobrir as causas desse alto índice e os resultados indicam que, em muitos casos, estão relacionadas a problemas cardíacos”, disse Oliveira.

Em parceria com cientistas da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, o grupo de Ribeirão Preto analisou dados de 90 pacientes transplantados entre 2002 e 2011 – 31 deles atendidos no Brasil.

“Por meio dessa análise retrospectiva, vimos que dois terços dos pacientes não tinham anormalidades cardíacas e um terço apresentava comprometimento cardíaco grave. Observamos que o desfecho do transplante nesse segundo grupo era muito pior”, contou Oliveira.

Segundo a pesquisadora, cinco pacientes morreram durante o procedimento – quatro deles por causa do coração. “Alguns apresentaram piora da função pulmonar sem motivo aparente após o transplante. Como pulmão e coração estão muito relacionados, acreditamos que a causa seja cardíaca”, disse.

A ciclofosfamida é uma droga cardiotóxica, explicou Oliveira. Além disso, o procedimento sobrecarrega o coração pelo uso de grandes volumes líquidos. Essa associação de transplante com doença cardíaca prévia parece aumentar o risco do procedimento, além de deteriorar a função cardiopulmonar pós-transplante.

O acompanhamento dos pacientes feito ao longo dos cinco anos seguintes ao transplante mostrou sobrevida de 78% – oito pessoas morreram em decorrência de recaída da doença. A sobrevida livre de progressão foi de 70%.

Julio Voltarelli

Com base nos resultados da investigação, os pesquisadores propõem que a avaliação cardíaca criteriosa – que inclui ecocardiograma, eletrocardiograma, cateterismo e ressonância magnética do coração – seja adotada como pré-requisito do tratamento de esclerose sistêmica com TCTH.

“O problema muitas vezes passa despercebido. O coração já está comprometido, mas o paciente não apresenta sintomas”, afirmou Oliveira.

A pesquisadora ressaltou, no entanto, que ainda precisam ser feitos novos estudos para determinar precisamente a partir de qual nível de dano cardíaco o paciente se torna inelegível para o transplante.

“Existe um limite de segurança. Estamos planejando um estudo prospectivo – também em parceria com Northwestern e talvez com centros da França e da Inglaterra – para submeter os pacientes a esses exames e depois acompanhá-los para ver como evoluem”, contou.

A edição on-line da revista The Lancet de 28 de janeiro trouxe também um comentário sobre essa pesquisa assinado por três grandes especialistas britânicos da área: John Snowden, Mohammed Akil e David Kiely.

“Trata-se da maior análise já feita dos efeitos do TCTH em pacientes com esclerose sistêmica. O seguimento de cinco anos após o transplante permite fazer afirmações definitivas sobre a eficácia do procedimento, pois mostrou 70% de sobrevida livre de recidiva após cinco anos e melhora significativa nas medições feitas em órgãos específicos”, destacaram os especialistas.

“Em vista da alta prevalência de mortes de causa cardíaca relacionadas ao tratamento e da possibilidade de doença cardiopulmonar oculta, a avaliação complementar proposta é a abordagem correta para aumentar a segurança”, acrescentaram.

A versão impressa da revista, prevista para ser publicada em fevereiro, deve trazer também o obituário do pesquisador Julio Cesar Voltarelli, um dos autores do estudo que morreu em março de 2012.

Voltarelli era coordenador do Laboratório de Imunogenética e da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da FMRP-USP e liderou a pesquisa de TCTH no tratamento de doenças autoimunes no Brasil.

Agência Fapesp