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Exaltação da Santa Cruz

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Como o dia 14 de setembro cai em um domingo neste ano a Festa da Exaltação da Santa Cruz ocorre como Festa principal em substituição ao 24º. Domingo do Tempo Comum. É uma festa antiga, a de hoje. Em 335, no dia 13 de setembro, foram dedicadas duas grandes basílicas, construídas pelo Imperador dos romanos, Constantino Magno: uma no Gólgota e outra, no Santo Sepulcro. No dia seguinte, hoje, foram expostos ao povo, com imensa piedade, os restos da Cruz do Senhor. Daí a nossa festa hodierna: a Exaltação da Santa Cruz. Nós celebramos a Cruz onde Cristo deu a vida por nós. 

O mistério da cruz! Glória, suplício e tentação de escândalo para os cristãos; loucura inaceitável, insanidade deplorável para o mundo!

Na Sexta-feira Santa, durante a solene celebração da Paixão do Senhor, há o rito comovente da apresentação da Cruz: por três vezes, descobrindo-a pouco a pouco, se proclama, cantando: “Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo!” Frase estupenda, escandalosa, impressionante: no absurdo da cruz, na derrota da cruz, a Igreja proclama, que brotou a vida do mundo! Como pode ser? Naquela celebração, o povo, de joelhos, responde: “Vinde, adoremos!” É belo, este rito; é comovente! Mas, como é difícil, como é dolorosa, na nossa vida e na vida do mundo, a realidade que ele exprime – o mistério da cruz, de uma humanidade crucificada, de um mundo crucificado!

A Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo está no centro da nossa fé, pois, por ela, o Senhor Jesus venceu a nossa morte e ingressou na vida de ressurreição. Por isso, São Paulo exclama: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14). Mas, o que é a cruz? É uma tragédia, é um sinal de derrota, é resultado de uma injustiça miserável, é silêncio de Deus, que parece esquecer a dor do Filho e se cala diante da maldade, do pecado e da morte?

 A Cruz, em si mesma, é um terrível escândalo... em si mesma, seria sinal que Deus não existe e, se existe, não liga para a dor humana, para a injustiça que massacra o inocente... Na Cruz de Cristo está significada toda a Cruz do mundo e da humanidade: a Cruz do inocente que sofre, a Cruz dos órfãos, dos que morrem na guerra, a Cruz dos que são trucidados pela guerrilha urbana, a Cruz dos pobres, a Cruz das chacinas, a Cruz sem nome, sem vez e nem voz... Na Cruz do Senhor estão tantos povos e raças oprimidos, dizimados pela ganância e pelo ódio... Na Cruz de Cristo está simbolizada toda dor, todo fracasso, toda solidão, todo peso do mundo... Na Cruz do Senhor está tudo aquilo que nos deixa com uma pergunta presa na garganta: “Por que tanta dor, tanto sofrimento, tanta injustiça? Por que Deus se cala? Por que permite? Onde ele está?” Não pode compreender o mistério da Cruz quem não se deixa atingir e questionar por estas perguntas, por estas dores, por estes prantos! Não pode proclamar o triunfo do Senhor quem não suportou o absurdo da Cruz! 

A Cruz não é um ornamento, não é um monumento, uma brincadeira; a Cruz é um ícone, um símbolo, uma parábola impressionante e dolorosa! Na Cruz está significado tudo aquilo que tanto nos apavora! E, no entanto, Jesus diz, no evangelho desta festa, que era necessário passar pela Cruz: “Do mesmo modo que Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado...” (Jo 3,14). Palavra impressionante, confirmada após a ressurreição: “Não era necessário que o Filho sofresse tudo isso e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24,26). Por que era necessário? Por que no caminho do Cristo e do cristão tem que estar a Cruz, bendita e maldita? Por quê? E Para quê?

Para mostrar-nos até onde o pecado nos levou e até onde o amor de Deus está disposto a ir por nós. Vivemos num mundo crucificado, somos uma humanidade crucificada, porque nos afastamos da vida, que é Deus. Como o povo de Israel no caminho do deserto, que perdeu a paciência e murmurou contra o Senhor, assim a humanidade foi e vai se fechando para o Deus da vida e foi e vai encontrando a morte. Quantas serpentes venenosas mordem nossa existência! Mas, Deus não se cansou de nós: “Amou tanto o mundo que entregou o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crer, não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Era necessário mostrar a gravidade do nosso pecado, da nossa loucura de querer construir nossa existência sem Deus.

 Era necessário também mostrar até que ponto Deus nos leva a sério, até que ponto sofre conosco, até que ponto nos é solidário: ele não explica o sofrimento; silenciosamente, toma-o sobre os ombros, sofre conosco até o mais baixo da humilhação, da solidão e da dor: “Ele esvaziou-se de si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto de homem, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,7). No seu Filho único e querido, o Pai se condói com nossa dor, “com-sofre” conosco, como Deus de “com-paixão”. Ninguém, contemplando a Cruz, pode pensar que Deus é indiferente e frio ante o sofrimento do mundo. Ele não nos explica o sofrimento; toma-o sobre os ombros, silencioso e cheio de dolorido amor e piedade! 

Contemplar o mistério da Cruz é levar a sério que existe dor e miséria no mundo; é deixar-se tocar por todo sofrimento humano... mas é também compreender que Deus assumiu tudo isso em Jesus crucificado e venceu tudo isso na ressurreição. Contemplar a Cruz dá-nos a graça de nunca perder a esperança, mesmo diante dos maiores percalços. Quem contempla a Cruz e crê no Cristo Ressuscitado, não perde a confiança em Deus, não se desespera, não se despedaça: “Do mesmo modo que Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos aqueles que nele crerem (que o contemplarem), tenham a vida eterna” (Jo 3,16). A Cruz, portanto, joga-nos na realidade da vida e do mundo - realidade crua.... Mas, cheios de esperança, pois sabemos que Cristo fez dela, da cruz, um sinal de amor e ressurreição.

Por isso a Cruz é um sinal; por isso Paulo não queria gloriar-se a não ser na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo; por isso hoje louvamos o mistério da Cruz; por isso nos dispomos a não só traçar o sinal da Cruz sobre nós com devoção, mas a viver nossa Cruz unidos a Cristo, invencíveis na esperança da ressurreição; por isso digamos como na antífona do Cântico evangélico das laudes: Adoramos, Senhor, Vosso madeiro; vossa ressurreição nós celebramos. A alegria chegou ao mundo inteiro pela cruz que nós hoje veneramos.

* Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ.