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Ano da Caridade no tríduo pascal

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Neste tempo favorável da Quinta-feira Santa, quando renovamos as nossas promessas sacerdotais, quero, por ocasião de nosso Ano da Caridade Arquidiocesano, compartilhar algumas reflexões sobre o dia da instituição da Santíssima Eucaristia e do Sacerdócio Ministerial. Agradeço a Deus, em primeiro lugar, pelo trabalho que todos e cada um dos nossos presbíteros realizam em nossa Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Prezados irmãos no sacerdócio de Cristo, Nosso Senhor, o sacerdote por excelência segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 5,10), estamos vivendo, desde o dia 20 de janeiro, festa de São Sebastião, padroeiro da nossa Arquidiocese, o Ano da Caridade, ou seja, um tempo oportuno da graça de Deus (kairós) para juntos refletirmos e agirmos dentro do amor inspirado pela Sagrada Escritura, mais especialmente pelo Novo Testamento, que é o ágape (grego) ou caritas, caritais (latim).

Desejo, portanto, a partir desta Mensagem, pensar com os senhores, presbíteros desta porção do povo de Deus que está no Rio de Janeiro, a respeito do significado do termo ágape: amor fraterno, serviçal, desinteressado, que se dirige diretamente ao ser amado ou àquele que amamos sem esperar nada em troca, pois é exatamente neste tipo de amor que todos devem nos reconhecer como verdadeiros cristãos. Esta é, sem rodeios, a lição de Jesus Cristo: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35).

Deste amor brota a comunhão (koinonia), essência do mistério da Igreja. Comunhão que, segundo o Papa João Paulo II, “é o fruto e a expressão daquele amor que, brotando do coração do Pai Eterno, se derrama em nós por meio do Espírito Santo que Jesus nos dá (cf. Rm 5,5), para fazer de nós ‘um só coração e uma só alma’ (At 4,32). Ao realizar essa comunhão de amor, a Igreja manifesta-se como ‘sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano’ (Lumen Gentium, 1)” (Novo Millennio Ineunte, n. 42).

Continua, ainda, o Beato João Paulo II a escrever, em 2001: a respeito do amor “as palavras do Senhor são tão precisas que não é possível reduzir o seu alcance. A Igreja terá necessidade de muitas coisas para a sua caminhada histórica, também no novo século; mas, se faltar a caridade (ágape), tudo será inútil. O apóstolo Paulo no-lo recorda no hino da caridade: ainda que falássemos a língua dos homens e dos anjos e tivéssemos uma fé capaz de ‘transportar montanhas’, mas faltasse a caridade, de ‘nada’ nos serviria (cf. 1Cor 13,2). A caridade é verdadeiramente o ‘coração da Igreja’ como bem intuiu Teresa de Lisieux, que eu quis proclamar Doutora da Igreja precisamente como perita da scientia amoris: ‘Compreendi que a Igreja tem um coração, um coração ardente de amor; compreendi que só o amor levava os membros da Igreja a agir [...]; compreendi que o amor encerra em si todas as vocações, que o amor é tudo’. Manuscritos B, 3-3vs: Opere Complete (Vaticano 1997), 223” (idem).

O Bispo com o presbitério e todo o povo de Deus são chamados a derramar esse amor caritativo abundantemente. Bento XVI nos recorda que a “Igreja enquanto família de Deus deve ser hoje como ontem, um espaço de ajuda recíproca e, simultaneamente, um espaço de disponibilidade para servir mesmo aqueles que, fora dela, têm necessidade de ajuda” (n. 32).

Devemos contar com sacerdotes, religiosos e leigos(as) engajados na prática da caridade, sempre em comunhão com o seu Pastor que segue, por sua vez, como carta magna orientadora, o hino da caridade entoado por São Paulo (1Cor 13). Afinal, amar com amor-ágape não é recorrer a ideologias que pregam o melhoramento meramente humano do mundo, nem apenas dar ao outro qualquer coisa minha, mas dar-me a mim mesmo. Devo estar presente no dom como pessoa (cf. DCE, n. 33-34).

Nossa Arquidiocese tem, com a graça de Deus, inúmeras obras de caridade. Algumas vivem dificuldades nos seus projetos. Não vamos nos esmorecer diante das referidas dificuldades para não perdermos os espaços conquistados. Sabemos que muitas legislações procuram dificultar o exercício da caridade, que sempre foi uma marca da Igreja e que iniciou em nossa pátria uma série de atividades que até hoje permanecem, mesmo com as mudanças de leis e dos costumes.

O verdadeiro cristão age sob esse diferencial, que supera uma mera filantropia (amizade com o homem), porque, em sintonia direta com Cristo, Nosso Senhor, quer servir como Ele serviu, a ponto de, cingido com uma toalha, lavar os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-13) e amar como Ele amou ao morrer na cruz por todos (cf. Jo 13,1; 15,13). Ora, se vivermos imbuídos desse amor, seremos, enquanto ministros ordenados, como os primeiros cristãos, dóceis e dedicados ao próximo na oração e na fração do pão (cf. At 2,42), de modo que, nas nossas comunidades paroquiais – realidade pastoral centralizada no Documento Comunidade de comunidades: uma nova paróquia, da coleção Estudos da CNBB n. 104, e na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, n. 27-33 – reine a verdadeira fraternidade na qual todos, indistintamente (cf. Lc 10,31 – parábola do Bom Samaritano), tenham o necessário para uma vida digna.

Para concretizar o amor-agápe, desde a Igreja primitiva, ao lado do anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria) e da celebração dos Sacramentos (leiturgia), existe o serviço da caridade para com os mais necessitados (diakonia) entendido não como mais uma forma de assistência social que qualquer um poderia executar, mas, sim, como um elemento essencial da missão da Igreja (DCE n. 25). É por essa razão que os primeiros diáconos não foram pessoas escolhidas aleatoriamente. Ao contrário, para desempenharem a caridade em favor do próximo, ofício, antes de tudo verdadeiramente espiritual, deviam ser homens cheios do Espírito Santo e de sabedoria (cf. At 6,1-6). E esse tipo de trabalho social alicerçado na fé é o nosso diferencial.

A fim de manter vivo esse significativo diferencial, Bento XVI julga ser “muito importante que a atividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante”. Para isso, é preciso que todos estejam disponíveis a socorrer os que mais precisarem no “aqui e agora da vida” com competência técnica, sem dúvida, mas também e, sobretudo, com o coração formado a partir do encontro pessoal com Deus, em seu Filho Jesus Cristo; estejam isentos de partidos ou ideologias, especialmente da marxista, que menospreza a caridade como se esta fosse responsável pela manutenção de uma sociedade injusta e opressora, quando, na realidade, o cristão é chamado, independentemente do que os ideólogos pensam ou deixam de pensar, a minorar a dor de seus irmãos e irmãs em todo tempo e lugar; a caridade cristã não deve ser proselitista, ou seja, deve-se fazer a caridade de modo totalmente gratuito em nome de Deus e dos princípios da Igreja, mas sem querer, a partir ou por meio dela, impor nossa fé aos socorridos (DCE n 31).

Enquanto homens da Igreja, temos – especialmente os sacerdotes protagonistas desta mensagem do bispo – de entender que a Mãe Igreja tem o seu modo próprio de agir, à luz do Evangelho (há um conjunto de documentos que formam a Doutrina Social da Igreja, desde a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, até a Caritas in Veritate, de Bento XVI, em 2009), mas ela não despreza – e isso é importante em nossa prática pastoral – as iniciativas de outras instituições religiosas, conforme está claro na encíclica Solicitudo Rei Socialis, do Papa João Paulo II, publicada em 1987. Nesse memorável documento, aquele Pontífice afirma que “do mesmo modo em que nós, católicos, convidamos os nossos irmãos cristãos a participarem das nossas iniciativas, assim também nos declaramos prontos a colaborar com as suas, acolhendo os convites que nos forem feitos. Nesta busca do desenvolvimento integral do homem, podemos fazer muito também àqueles de outras religiões, que creem em Deus, como, de resto, já se está fazendo em várias partes” (n. 32).

É este um pensamento importante que eu quis retomar na recente Carta Pastoral Amar, Unir, Servir, de 25 de janeiro último, ao fazer a seguinte constatação, que desejo, muito cordialmente, ver concretizada entre nós: “Sei que nem todas as pessoas são cristãs, que nem todos os cristãos são católicos. No ideal da unidade, ideal que aprendi de Jesus Cristo e coloquei como lema para minha vida (cf. Jo 17,21), desejo que estejamos cada vez mais unidos, na certeza de que temos mais razões para nos unir do que para nos separar. Convido a todos para valorizar todas as situações que a vida nos apresentar, vendo-as como convites a nos unirmos, a estarmos juntos, a fazermos juntos o que será para o benefício de todos, especialmente, como tanto tenho aqui repetido, pelos que sofrem” (n. 17).

Recordemos da advertência do nosso querido Papa Francisco: nem toda carência é apenas material, por isso não se pode, em nome de um ativismo caritativo (cf. Evangelii Gaudium [EG] n. 199), negligenciar aos irmãos necessitados os valores espirituais próprios da Igreja. Eis, textualmente, suas palavras que parecem escritas com o coração de um Pastor realmente tomado de amor por suas ovelhas: “desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (idem, n. 200).

Aliás, um pouco antes, Francisco – retomando alguns pontos já apresentados nesta reflexão – nos propõe o roteiro da caminhada com os pobres, preferidos de Cristo (cf. Lc 4,18; Mt 5,3 etc.), ao dizer que “O amor autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: ‘Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça’ (São Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 110, a. 1.). Quando amado, o pobre ‘é estimado como de alto valor’ (idem, I-II, q. 26, a. 3.) e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que ‘os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como ‘em casa’. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?’ (João Paulo II, Carta Ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 50: AAS 93 (2001), 303). Sem a opção preferencial pelos pobres, ‘o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta” (idem, 50: o. c., 303) (EG., n. 199).

Estamos vivendo o ano eleitoral e é importante que valorizemos e defendamos os valores do Evangelho que se expressam nas questões sociais. Espero que continuemos dando atenção especial aos que mais precisam de assistência, promoção e transformação social.

Peço-lhes, queridos sacerdotes, que transmitam aos seus fiéis, em todos os recantos desta amada Igreja Metropolitana, os meus mais efusivos cumprimentos pascais. Abracem seus fiéis em meu nome e dos bispos auxiliares. Levem a todos a boa notícia do Evangelho da Vida: Jesus Cristo venceu a morte e está vivo verdadeiramente!

Por fim, prezados sacerdotes, abraçando-os neste tempo pascal, peçamos, por intercessão da Virgem Maria, que o Divino Espírito Santo nos inspire na prática da caridade e nas atividades pastorais, de modo que possamos, no dia final, ouvir do Senhor: “Vinde benditos de meu Pai, recebei por herança o reino que estava preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,34). Amém!

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist. 

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ