CINEMA

'Refletir virou um verbo careta'

Olivier Assayas discute preguiças intelectuais ao levar a Berlinale às gargalhadas com 'Hors du Temps'

Por RODRIGO FONSECA, de Berlim
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Publicado em 19/02/2024 às 11:15

O francês Olivier Assayas Foto: divulgação

Na última vez em que foi ao Rio de Janeiro exibir um filme, para a sessão do Estação NET Gávea de "Wasp Network: Rede de Espiões" (2019), o realizador francês Olivier Assayas denunciou um efeito colateral da cultura digital: falta de reflexão.

Querido nos rincões mais radicais da autoralidade fílmica por cults como “Depois de Maio” (melhor roteiro em Veneza, em 2012), ele sempre fez ecoar os medalhões da prosa e da filosofia da França em seus longas. Muitos medalhões (da pintura e da música também) são citados em "Hors du Temps", hilária comédia que trouxe o diretor de 69 anos para a disputa pelo Urso de Ouro de 2024. É a trama mais pessoal de toda a sua obra, consagrada aos olhos da indústria pela minissérie “Carlos, o Chacal” (ganhadora do Globo de Ouro em 2011),

"Todos os processos técnicos e tecnológicos podem conviver, desde que haja espectadores conscientes do que assistem", disse Assayas em referência ao clima de desintoxição eletrônica vivido pelos personagens de "Hors du Temps", numa divertida reconstituição da fase de isolamento vivida pelo planeta em decorrência do coronavírus.

Alter ego do diretor, o cineasta vivido por Vincent Macaigne até faz terapia via Zoom, por celular, e conversa com sua filha por Facetime. Mas, no geral, ele, sua namorada e um outro casal, que dividem uma quarentena numa casa de campo, passam seus dias a ler, a conversar, a cozinhar, a fazer amor, a inventar teorias malucas sobre a existência. Há um lirismo que lembra o cinema de François Truffaut e o de Éric Rohmer, um dos pilares da formação de olhar de Assayas, que escreveu críticas antes de dirigir.

"Fora Rohmer, eu preciso muito de Guy Debord, aliás, preciso dele sempre, por ele ter sido o maior pensador da contemporaneidade, a partir dos anos 1960. Ele me dá um objeto: a invisibilidade", disse Assyas ao JORNAL DO BRASIL em sua visita mais recente ao Brasil. "Há uma gradual desaparição da conversa olho no olho, sem um celular no meio. Ao mesmo tempo, o mundo passa por um
populismo político barateador que difunde um certo desprezo à intelectualidade, ao ritual de se conversar sobre aquilo que lemos. Refletir virou um verbo careta para uma sociedade que quer gratificações imediatas".

A Berlinale segue até domingo (25). No sábado (24), o júri presidido por Lupita Nyong'o anuncia os vencedores. "La Cocina", do mexicano Alonso Ruizpalacios, é o mais forte concorrente.

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