CINEMA

Festival de Berlim prepara corte para Martin Scorsese

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Por RODRIGO FONSECA, de Berlim
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Publicado em 17/02/2024 às 17:55

Alterado em 17/02/2024 às 17:55

[Martin Scorsese] Berlim reverencia o grande nestre Foto: Berlinale/divulgação

Lá se vão 15 anos desde que Martin Scorsese abriu o Festival de Berlim de 2008 com "Shine a Light", documentário sobre os Rolling Stones. Faz mais tempo ainda desde que ele concorreu ao Urso de Ouro, a mais importante láurea do evento: foi em 1992, com "Cabo do Medo". Nesta terça, quando o diretor de 81 anos passar pela capital alemã, uma vez mais, parte das histórias que viveu nessas duas ocasiões virá à tona, a coroar uma cerimônia de gala no Berlinale Palast.

No dia 20, o artesão autoral nova-iorquino, hoje em competição pelo Oscar de Melhor Direção com "Assassinos da Lua das Flores" (já na Apple TV), vai receber o Urso de Ouro Honorário de 2024. Nos últimos anos, Steven Spielberg, Helen Mirren, Charlotte Rampling, Isabelle Huppert e Willem Dafoe foram agraciados com tal troféu. Para dar mais ênfase a essa sua conquista, Berlim projeta, na terça mesmo, o sucesso de bilheteria "Os Infiltrados", pelo qual ele foi oscarizado em 2007. Na quarta, será exibido o cult "Depois de Horas", que ganhou o Prêmio de Melhor Realização em Cannes, em 1985.

No set com Jack Nicholson Foto: divulgação

O muso De Niro

Nos últimos cinco anos, ele teve chance de poder trabalhar com seu muso e amigo Robert De Niro duas vezes. Filmaram “O Irlandês” (2019) e, agora, "Assassinos...". Por isso, estima-se que De Niro vá até à Alemanha para abrir o evento de honraria ao cineasta no Festival de Berlim. “De Niro e eu nos conhecemos desde os 16 anos e, agora, estamos numa idade em que a gente se liga para falar de dores novas que estamos sentindo ou de algum cansaço que não fazia parte de nossas rotinas quando Nova York era um mar de criatividade aberto a nós”, disse o mítico cineasta ao JORNAL DO BRASIL em uma palestra no 17º Festival de Marrakech, onde foi homenagear seu velho amigo.

Seus maiores sucessos, de hoje (“Lobo de Wall Street”, “A Invenção de Hugo Cabret”) e de ontem (“A cor do dinheiro”, “Cassino”) podem ser encontrados na loja de DVDs da Cinemateca de Berlim.

"Passei a vida contando histórias que instigam a minha imaginação sob a inspiração do que aprendi nos filmes que via enquanto crescia", disse Scorsese quando o convite da Berlinale foi feito.

Desde 2018, quando foi homenageado na Quinzena dos Realizadores, no balneário de Cannes, Scorsese anda muito generoso com os convites dos festivais internacionais para falar de sua obra. Fez isso na Croisette e voltou a fazê-lo no Marrocos, na mostra anual de Marrakech, onde foi conferir a cópia nova de "Os Bons Companheiros" (1990) e de “Kundun” (1997), e aproveitou sua passagem pelo evento para falar sobre sua carreira e suas angústias audiovisuais.

“Há cifras muito altas em torno de 'Homem-Aranha', 'Batman' e esses super-heróis todos, mas filmes ousados de diferentes países, feitos com pouco dinheiro, andam sem espaço. Festivais devem ajudar essas produções a encontrar seu público", disse Scorsese para uma plateia lotada, em um papo triangulado por uma dupla de diretores do Marrocos (Laïla Marrakchi e Faouzi Bensaïdi), que durou quase duas horas, com direito a trechos de cults como "Cassino" (1995) e "A última tentação de Cristo" (1988).

Baú de saudades

Scorsese abriu o peito em Marrakech, da mesma forma como fez em Cannes, e como deve abrir na coletiva de Berlim. Ambas as cidades extraíram dele um baú de saudades. "Era um menino com asma que não podia correr nem rir muito alto. Numa casa sem livros, meus pais me levaram ao cinema, para ver o clássicos da Hollywood de 1944, 45. A chegada de uma pequenina televisão em nossa casa mudou as coisas, pois havia um canal de TV só para italianos em Nova York, no qual eu vi clássicos da Itália como 'Paisà'. Ali, a noção de 'filme estrangeiro' passou a ser bem próxima para mim", disse o cineasta, ganhador do Oscar em 2007 por "Os infiltrados", com Jack Nicholson. "Ao trabalhar com ele, havia um ponto da improvisação que você precisa conhecer bem. É necessário correr atrás dos atores, entender os espaços deles, perceber o quanto há deles nos personagens".

Festivais gozam do afeto de Scorsese porque foi na Croisette, em 1974, em que ele, então um iniciante, exibiu o longa-metragem que bancou seu passe para o estrelato: “Caminhos perigosos” (“Mean streets), cuja cópia nova deve voltar a circuito em 2019, ao menos na França. “Quando eu trouxe esse filme pra Cannes, nos anos 1970, eu desfrutava de um anonimato que me permita ir de restaurante em restaurante, espiar o Wim Wenders e o Werner Herzog, que estavam começando também, e falar horas e horas sobre filmes. Era uma época em que a gente sabia onde estava cada objeto de uma cena filmada por diretores como Raoul Walsh, a quem eu idolatrava e ainda idolatro, como quem sabe a geografia de um espaço. Era geografia de set”, contou o diretor em Cannes, com a incontinência verbal (tensa e tímida) que lhe é peculiar.

Na Berlinale, sua memória vai se fazer valer, ao passo em que ele revisitar seus vários exercícios autorais, incluindo o comercialmente malfadado "O rei da comédia" (1983). “A última vez em que estive com Jerry Lewis, com quem filmei ‘O Rei da Comédia’, em 1983, ele já estava com quase 60 anos, e me disse uma coisa que bateu forte em mim. Naquele idade, ele ainda pensava em trabalhar e dizia: ‘Se você estiver fazendo um filme, e perceber que o tempo não está bom, algo está errado’. No vocabulário do Jerry, ‘tempo ruim’ significava não sentir prazer, não ter foco. Preciso ter foco no que eu espero contar ao pisar num set. Pra isso, eu desenho. Faço desenhos próximos do que chamam de storyboards de cada elemento de uma cena. Cada luta do ‘Touro indomável’ foi desenhada”, disse Scorsese a uma plateia muda de tamanho encanto, de olhos lacrimejados. “Eu já passei momentos difíceis. Cresci num bairro duro, violento, com muita gente ruim e muita gente boa. Eu não sei o que eu aprendi com os filmes que fiz, mas tive a chance de dominar uma lição: fracassar é ok, desde que você se levante depois. Já vivi ‘tempos ruins’ filmando, mas me dei conta de que eu faço cinema para compartilhar com as pessoas referências que aprendi com o cinema e mudaram a minha vida... uma vida que começou pobre, asmática, numa casa sem livros. A falta de livros e a asma me levaram aos filmes. É a cultura da imagem. Nos anos 1970, essa cultura produziu diretores que tinham medo de ver seus projetos extintos pela vaidade de um ator. Nos anos 1980, uma frase de um crítico poderia acabar com um filme. Hoje o problema é o fato de as salas de cinema estarem sumindo”.

A Berlinale 2024 termina no dia 25. No dia 24, os ganhadores do Urso de Ouro e dos Ursos de Prata serão anunciados pela atriz Lupita Nyong'o, que preside o júri desta edição (de número 74). O mexicano "La Cocina", de Alonso Ruizpalacios, é o favorito até o momento.