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Sempre aos domingos - O obscurantismo e a ignorância despudorados empurram um país para trás

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Vivi um tempo em que as pessoas ignorantes morriam de constrangimento de sua ignorância. Quando eu falo em ignorância, não estou me atendo à educação. Falo do ato de ignorar, aquela coisa de ter opinião formada com base em mentiras, por preconceito, convicções religiosas com base em textos escritos há dois milênios ou apesar do desconhecimento. Exemplos: a terra é plana, o homem nunca pisou na lua, transfusões de sangue corrompem a pureza humana, Elvis não morreu. Ocorre que a vida passa em ciclos e vivemos tempos sombrios, onde a ignorância não apenas saiu do armário como se exibe pelas redes sociais com um orgulho de raiz. Essa ignorância-roots-ufanista não seria problema algum se ela se limitasse a quem a exibe com convicção. Paciência. Mas quando a ignorância começa a se tornar perigosa, seja porque coloca em risco a saúde ou integridade do outro, seja quando ela é característica de um governante cujas decisões afetam milhões, então é hora de reagir. 

Eu não consigo pensar em outra coisa quando assisto ao retorno de doenças que consideramos coisa do século passado, como sarampo, pólio, difteria, caxumba, entre outras, porque pais deliberadamente deixam de vacinar seus filhos, apesar de toda a pesquisa científica mostrando as vantagens da vacinação pública e que vacinas não dão autismo (já li isso em grupo de Whatsapp). Sobre isso, uma parcela da culpa é dos governos, que afrouxaram as campanhas de conscientização sobre vacinas básicas ou não as colocam à disposição nos postos e hospitais públicos com a devida eficiência. Outra é dos pais, cuja ignorância coloca em risco a saúde dos filhos. 

Conta Natália Taschner, bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, no blog “Cientistas explicam”, do excelente portal “Saúde”: “O mais surpreendente é que famílias que escolhem não vacinar seus filhos reportam abertamente que usam, como fonte de informação, as redes sociais! Curiosamente, o medo das vacinas espalhado pelas redes começou por causa de um médico que ... queria ficar rico vendendo um imunizante contra o sarampo. Para isso, fraudou um trabalho científico a fim de relacionar a vacina tríplice viral MMR, que protege frente a sarampo, rubéola e caxumba, com o autismo. 

A história aconteceu em 1998 e o protagonista foi o médico britânico Andrew Wakefield. Seu estudo, embora tenha sido publicado em um periódico respeitado no meio científico, contava com apenas 12 pacientes e não dispunha de fundamento. Forjando uma relação inexistente, Wakefield afirmava categoricamente que a vacina era a causa do autismo de seus pacientes. 

Anos depois, descobriu-se não apenas que a pesquisa era uma fraude, com todos os dados e prontuários alterados, como também o estimado doutor havia sido financiado por um advogado que pretendia lucrar milhões processando os fabricantes da vacina. Ele mesmo tinha ambição de patentear uma nova vacina para substituir a MMR”. 

Informar-se exclusivamente por posts de redes sociais, sem uma fonte confiável por trás, é das nossas maiores e mais prejudiciais fontes de ignorância coletiva. Recentemente, o presidente Dondald Trump – um clássico ignorante roots-ufanista – tuitou: “Crianças saudáveis vão ao médico, são bombardeadas com um monte de vacinas, não se sentem bem e mudam — AUTISMO. Muitos casos”. Precisamos de uma vacina de iluminismo já. Porque a tentativa de ignorantes obscurantistas de empurrar todo um país para a Idade Média parece ter crescido nos últimos anos. 

A problemática das vacinas é apenas um exemplo. Em fevereiro, a Anistia Internacional produziu um relatório em que dizia que “diversas propostas que ameaçavam direitos humanos e retrocediam adversamente as leis e políticas existentes avançaram” no Brasil. O documento critica a proposta de redução da maioridade penal, as tentativas de flexibilizar o acesso às armas de fogo, a criminalização dos protestos, a proibição absoluta do aborto até em casos de estupro, as mudanças nos processos de demarcação de terras indígenas, a precarização da reforma trabalhista e a Lei 13.491/2017, que diz que crimes cometidos por militares devem ser julgados em tribunais militares. A esses pontos eu somaria a liberação dos agrotóxicos, as agressões a locais de culto de religiões de matrizes africanas, a pressão pela inexistência de educação sexual nas escolas ou o próprio Escola Sem Partido, entre outros. 

É certo que muitos desses pontos não são frutos da ignorância sozinha, mas de uma complacência ignorante a serviço de interesses de grupos poderosos. Como defender o uso indiscriminado de armas de fogo se, na semana passada, um cabo da PM – uma pessoa que, em tese, é treinada para lidar com a posse de armas –  atirou e matou um rapaz de 16 anos porque ele estaria “fazendo barulho demais”? Mas há 100% de ignorância no ataque a locais de culto de religiões de matrizes africanas, na pressão pela falta de educação sexual nas escolas, na proibição do aborto até em casos de estupro, enfim, ignorância de várias origens que é preciso combater. Ignorância se combate com educação. E no dia a dia, dando acesso às pessoas a informações confiáveis, embasadas em dados empíricos ou investigações e estudos sérios. Nas urnas, diluindo as danosas bancadas BBB (da bala, do boi e da Bíblia) e devolvendo-as à Idade Média e ao faroeste de onde nunca deveriam ter saído.