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Elementos da nação brasileira em Drummond

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Em agosto, as candidaturas a presidente serão oficiais; e farão 31 anos que Drummond nos deixou. As duas coisas se reúnem numa releitura da obra do poeta, que deveria começar pela preocupação primordial dos aspirantes ao cargo de presidente: a fome e a miséria que ainda assombram o país, sobretudo diante da recente retração da economia. Não seria ironia eleger como centro temático o único poema que encontrei no qual Drummond fala de alimentação, o “Poema culinário”, para abordar os elementos fundacionais da nação brasileira em sua obra e sua relação com o ano eleitoral. 

Elaborado como receita em versos, na tradição medieval de muitas obras culinárias do Velho Continente, o “Poema culinário”, contido no livro “Viola de bolso”, da Companhia das Letras, constitui uma pérola de sua obra literária. Drummond nos presenteia com uma receita dos croquetes de galinha, semelhantes àqueles encontrados no livro de receitas de Dona Benta, “Comer bem”, popular nas casas da classe média carioca entre 1950 e 1980. 

A iguaria é originária da França e foi incorporada ao repertório gastronômico nacional na última metade do século 19, com a publicação do “Cozinheiro imperial”. Machado de Assis, em “As bodas do dr. Duarte”, já mencionava os croquetes, associando-os à elite do período imperial, que herdou os hábitos culinários da família real portuguesa, aparentada com os Bourbon e os D’Orléans de França, que veio para o Brasil fugida da Europa vitimada por Napoleão, que subiu ao poder graças à Revolução Francesa... aquela tal Revolução dos Brioches.

A receita Drummondiana é feita por quem sabe comer um bom prato e transita na linde tênue entre o recatado prazer pela boa mesa e o seu extremo, o imaginário pecaminoso da gula libidinosa. Escrito como a descrição dos passos que levarão ao pecado, antecipado até o último verso, ao qual sucumbe, o poema culinário consegue ser referência esteticamente clássica do fazer literário que aborda as transgressões dos grandes pecados sensoriais e sensuais – gula e luxúria. Afinal, a existência humana deve-se ao binômio aparelho digestivo/aparelho reprodutor, ou seja, estômago e sexo, e a abordagem de seus prazeres em literatura eram condenadas ao Index. Vejamos o poema em questão; o “Poema Culinário”:

“Na croquete de galinha, A cebola batidinha Com duas folhas de louro Vale mais que um tesouro. Também dois dentes de alho Nunca serão espantalho. (Ao contrário) E três tomates, Em vez de causar dislates, Sem pele e sem sementes, São ajudas pertinentes Ao lado do sal, da salsa, (A receita nunca é falsa) Todos bóiam na manteiga De natural doce e meiga. E para maior deleite, Um copo e meio de leite. Ah, me esqueci: três ovos Bem graúdos e bem novos Junto à farinha de rosca (Espante-se logo a mosca) Mais a pitada de óleo, Sem se manchar o linóleo,E mais farinha de trigo... Ai, meu Deus! Deixa comigo"

Drummond não é o primeiro a deixar transparecer a história de um país em uma poesia. Antes dele, Manuel Bandeira, com seu “Trem de ferro”, definia o país da locomotiva paulista como café com pão e o açúcar dos canaviais. Fernando Henrique Cardoso foi um que declarou que, com o real, o brasileiro poderia ter frango e iogurte à mesa. Lula, por sua vez, associou seus correligionários às raízes migratórias do início do século 20 e aos ítalo-brasileiros, para quem o sanduíche de mortadela era iguaria restrita à classe alta.

O “Poema culinário” trata das origens, da bagagem histórico-cultural que determina a escolha de um prato dentre todo um leque de opções culinárias oferecidas tanto pela gastronomia internacional, quanto, no caso de Drummond, pela gastronomia mineira. Drummond fala ao coração e à alma dos brasileiros, que já em Machado de Assis confessavam a preferência pelo croquete, que, se um dia fora importado, deixou-se absorver pelo banquete nacional e ganhou vida própria com o codinome de “bolinho”. É esse o Brasil de Drummond, que, ao invés de segregar, aglutina e incorpora, apossa-se, como queriam os modernistas, em um processo antropofágico singular. 

Uma releitura do vasto universo contido em apenas um poema seria capaz de animar o debate político atual e iluminar o esforço intelectual de pensar o Brasil e de mapear as forças políticas que com os escândalos de corrupção e desvio de recursos da Lava Jato entram em jogo nas eleições de 2018. Justamente tendo como eixo principal a questão das origens, o equivalente aos “Founding Fathers” norte-americanos, pode-se chegar a indagar sobre o processo de escolha e a finalidade das plataformas de cada candidato que se apresentar para as próximas eleições. 

Drummond jamais negou sua origem ligada à oligarquia agrária dominante desde o Império, e em carta à Mario de Andrade disse considerar-se mais francês do que brasileiro. Agora, em 2018, talvez a questão seja a mesma que na época da Revolução Francesa, que metaforicamente ilustramos com o “Poema culinário”, isto é, diante da escassez de recursos nacionais, o que fazer? Eleger um doidivanas que sugere a distribuição de brioches (croquetes) sem entender que já não há farinha para fazer pão; ou votar em alguém que trabalhará para você conquistar os meios para ter também o croquete (brioche) de galinha à mesa? 

* Escritora, mestre em Administração Pública pela JF Kennedy School of Government, Harvard University