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Teatro de fantoches

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A vida da vereadora Marielle Franco tornou-se o enredo de uma peça macabra, que acaba de completar quatro meses em cartaz. A farsa da investigação policial manipula o público com técnicas que confundem o falso e o verdadeiro, numa encenação que vira e mexe aparece nas páginas dos jornais como uma obra de teatro do absurdo, protagonizada por fantoches. Entre mentiras e falsas verdades, seus autores, do crime e da farsa, trabalham com a perspectiva de que aos poucos o luto por Marielle será esquecido, e o crime entrará para o rol daqueles considerados “normais”, como tantos outros que o antecederam.

Tem sido sempre assim, faz parte da cultura brasileira, desde a escravidão. A execução de Marielle, com três tiros na cabeça e um no pescoço, e do seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018, reúne todos os elementos, em seu planejamento e ação, de um crime sórdido, de clara natureza política, por isso mesmo indevassável. A característica do ato, em via pública e não num campo de batalha, revela a precisão com que agiram os mandantes, que contrataram milicianos ou pistoleiros para a execução. Até agora não identificados.

Ao completar 125 dias, um novo ato do drama veio a público. Os atores retornaram ao palco com novas falas. São todos já conhecidos, membros destacados da burocracia e do aparelho estatal. Generais que assumiram papéis de destaque, ministros, policiais, procuradores, secretários de Estado, uns acusando os outros, embriagados com suas próprias virtudes. Aparentemente interessados em esclarecer o mistério do assassinato da vereadora, crítica das ações da Polícia Militar e da intervenção federal no Rio. 

O general Walter Braga Netto, interventor federal na segurança pública no Estado, diz que acertou com o presidente Temer uma “ordem de silêncio” em torno das investigações. Procuradores federais e estaduais brigam entre si. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, é acusado de prejudicar as investigações com sua verborragia, que chegou a declarar, há dois meses, que as investigações estavam chegando a seu fim. Foi enquadrado, retirou-se de cena e calou a boca. Prevaleceu a lei do silêncio. 

Até o momento, a principal linha de apuração conduzida pela Divisão de Homicídios é o depoimento de uma testemunha que envolve no crime o vereador Marcello Siciliano (PHS) e o ex-PM Orlando de Araújo, acusado de comandar uma milícia na Zona Norte do Rio. Personagens sem importância na trama, nada que ponha em risco o desmascaramento dos verdadeiros autores. Os fantoches deixaram de se preocupar com a verossimilhança dos seus papéis, certos de que não perderão o emprego e não serão incomodados.

Para impedir esse destino podemos imaginar um novo ato em que Marielle Franco seja indicada pela Academia sueca para receber o prêmio póstumo de Nobel da Paz, por todos os seus méritos: negra, sobrevivente do mundo da periferia e das favelas, socióloga, feminista, lésbica, defensora dos direitos humanos, pregadora da não-violência e eleita vereadora com mais de 46 mil votos. Com a alta distinção simbólica, ela poderia vencer seus algozes graças ao reconhecimento e a força da pressão internacional. 

Outra instituição de prestígio, a Anistia Internacional, chocada com a brutalidade do crime, ergueu sua voz de protesto. Nesta semana em que se completaram quatro meses, sua direção juntou-se à família enlutada para repetir a pergunta “Quem matou Marielle e Anderson?”. A diretora-executiva da Anistia, Jurema Werneck, enfatizou que é fundamental não apenas identificar e responsabilizar os autores dos disparos, como também os autores intelectuais e a motivação do crime.

Porque, vamos falar a verdade, não se trata de incompetência. O governo dispõe de todos os instrumentos para apurar, até mesmo um ato institucional em miniatura, com o decreto de intervenção federal no estado. Mas os fantoches desta peça de ficção, altas autoridades da República, decidiram fazer um jogo de cena indecoroso, para se proteger sob o manto da lei do silêncio e da impunidade. 

* Jornalista e escritor