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Desumano, demasiado desumano: sobre o dia a dia e as eleições

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Semana passada, assisti a três conteúdos audiovisuais que me tocaram bastante, cada um a seu jeito: no NOW, os filmes “Aos teus olhos”, dirigido por Carolina Jabor,  e “Extraordinário”, que eu havia perdido no cinema, de Stephen Chbosky, adaptação do best-seller homônimo escrito por R.J. Palacio. E no Netflix, “Nanette”, um espetáculo de stand up comedy com a australiana Hannah Gatsby. Sobre os dois primeiros, escrevi mais ou menos o seguinte no Facebook: 

“Vi os dois filmes e gostei muito. Ambos mereciam ser objeto de debates em escolas, na minha humilde opinião... “Aos teus olhos” é extremamente importante ao tratar de um tema atualíssimo: os linchamentos virtuais, nos quais as condenações são feitas a priori e reputações são destruídas em segundos. Carolina Jabor opta por deixar todas as pontas da verdade soltas e focar no processo de destruição e do ódio online. E seus efeitos de’vastadores. “Extraordinário” é um filmão hollywoodiano sobre ser diferente, fora do normal e as dores infinitas do processo de convívio com “gente normal”. É prenhe de boas intenções, delicado e inteligente. Piegas em muitos momentos, mas necessariamente piegas diante de um mundo tão bruto como o nosso. É um espelho das crueldades (bullyings) que passam de pais para filhos em nome da “normalidade”.

“Nanette” é ao mesmo tempo comédia, drama, soco no estômago, palestra do TED (alguém usou isso na discrição) e empoderamento feminino e lésbico num grau absurdo, tudo ao mesmo tempo agora. O espanto é ela começar o show anunciando que vai parar de fazer comédia, porque ela cansou de se autodepreciar como mulher e lésbica para fazer os outros rirem. E daí ela escancara uma humanidade e um exercício de paixão de abalar qualquer estrutura. E mais não digo porque senão vira spoiler. 

No Facebook, dou de cara com dois relatos poderosos. O primeiro, do jovem Lucas Acacio, que no dia do último jogo do Brasil foi covardemente espancado por seis homens heterossexuais em Santos, no litoral paulista, por ser gay. Ele desabafa num post onde exibe os hematomas da surra: “Em 2017, 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram mortos em crimes motivados por homofobia, uma vítima a cada 19 horas (fonte GGB). Você aí que diz que respeita, mas não aceita; que apoia Bolsonaro e seu discurso; que assovia prá mulher na rua; que usa “viado” como xingamento pejorativo; que segue Silas Malafaia... TODOS VOCÊS são culpados por todas essas mortes e por cada cicatriz no meu corpo. PAREM DE NOS MATAR!” 

Na quarta-feira, a querida Renata Rodrigues, do bloco Mulheres Rodadas, posta em sua timeline a seguinte história (resumida): “Nada pode ser mais ilustrativo da situação do Rio de Janeiro (acho que do Brasil) que a cena que eu presenciei hoje de manhã na Corrêa Dutra, no Catete. Vi uma turba correndo atrás de um cara de bicicleta, gritando: “pega, pega”!!!!... Um segurança não demorou para cercar e deter o cara. O problema foi o que veio depois: um bando de machos enfurecidos cercou o ladrão e começou a espancá-lo. Ele não estava armado. Não ofereceu resistência ou perigo a quem estava perto. Para a minha surpresa, o segurança interviu no sentido de não deixar o homem apanhar.

Pensei: não vão mesmo linchar ninguém na minha frente. A minha sorte foi que, ao meu lado, havia mais umas três mulheres muito destemidas. Prontamente, a gente se colocou entre o cara e os machos enfurecidos. Eles apontavam o dedo na nossa cara. Gritavam para a gente parar de defender vagabundo. E a gente só pedia calma, que a polícia ia chegar. E a polícia realmente chegou. Os caras continuavam: queria ver se fosse com a sua família, se ele te desse uma facada, é porque não é com você, vagabundo!, vai trabalhar e blá blá blá. O policial mandou algemar o cara, que tinha mesmo roubado a bicicleta... Não sei bem o que dizer, só sentir. Em volta, meio que todo mundo condenava as pessoas que tinham impedido que o cara continuasse apanhando”.

Duro. Humanidades: onde estão elas? O nível de ignorância, barbárie e fúria no país, especialmente entre dirigentes que deveriam elevar os debates e apaziguar os ânimos, já me faz temer pelo futuro dos meus filhos. Porque o líder nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência – e boa parte da população - prega esse estágio de (in)consciência quando diz que vai armar a população. Ou que ter uma filha mulher foi um deslize. Ou que defensores de direitos humanos são defensores de bandidos. 

O ensaísta Bruno Carvalho traça o perfil do bolsonarismo na última “Piauí”, comparando-o com o trumpismo nos EUA, ambos de maldisfarçadas intenções fascistas/autoritárias: o macho alfa branco e hetero legitimizando posições extremistas. No fundo, é um exercício de desumanidade e da hipervalorização da perspectiva subjetiva, o velho egoísmo. Diz ele: “O bolsonarismo, avesso à complexidade e à reflexão, oferece ao eleitor o conforto das certezas inabaláveis e a convicção de que a responsabilidade é sempre dos outros. O país está em crise? “Não foi você”. A dieta de notícias falsas, memes antiesquerda (difundidos pelo Movimento Brasil Livre e afins) e clichês pró-Bolsonaro dificultam qualquer visão realista e equilibrada dos problemas brasileiros, mas pode fazer muito bem à autoestima”. 

Tá puxado.