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Das indulgências

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Que o urbanismo é questão de fé, até o sufixo confirma. Como seita, institui clero, determina pecados, penitências e perdão. Plano Diretor como Bíblia, Código de Obras é catecismo.

Mas reconheça-se: pecados mortais, há poucos: ocupar áreas de risco ou de aproximação de aeroporto seriam bons exemplos. Veniais, em compensação, são inúmeros e que a tecno-teocracia alimenta. Tênue, porém, é o limite entre o apetite e a gula, ou o tesão e a luxúria, e, para o urbanismo, como reza o samba, pecar é questão só de peso e medida. O que dá para rir, dá para chorar.

Outrora, o direito de construir era algo natural. Porém, quando se cristalizam as instituições, vira concessão dos municípios, e o que era simples, complicou quando a técnica construtiva se desenvolveu. Em cena, um novo ator: densidade demográfica.

No tempo das paredes de terra eram raros os sobradões que alcançavam três andares. Mas com aço, concreto e elevadores alçando aos céus, deuses do urbanismo foram desafiados e o clero instigado a legislar até sobre saliências –literalmente: apenas saliências de até 2cm, em fachadas, são admissíveis. Com o arroubo legiferante, pecar, inversamente, passou a ser corriqueiro, recriando um velho e lucrativo negócio: a venda de indulgências. 

As leis vigentes ministram o direito de construir, limitando as doses, e é aí que resultam as pequenas, ou grandes, derrapagens, pois a posologia é bastante variada e nem sempre criteriosa.

Sofisticado, foi idealizado o solo-criado, pelo qual, construir apenas o equivalente à área do terreno seria um direito natural e, a partir daí, comprar-se-ia potencial construtivo. No Olimpo neoliberal, um outro deus entronizado passaria a marcar o direito de construir.

A realidade, porém, essa infiel, vem mostrando que, mesmo não se vivendo clima tão desregulamentado, há no Rio um milhão de m² de áreas recém-construídas e vazias, enquanto redes de esgoto vazam por toda parte. Ou seja, limitar é preciso, porém, impreciso.

Por certo, existem áreas pagãs, onde a mão do deus do urbanismo não chega, em absoluta libertinagem construtiva, mas, mesmo no asfalto catequizado persiste o pecado, o rosário de penas raramente impõe demolições. A cada administração municipal, uma bula é lançada, indultando os pecadores e seus puxadinhos, com algo de codinome “mais-valia”.

Para um marxista de lombada de livro, mais-valia, coisa urdida pelo tinhoso, soa estranho quando aplicada a quem apenas exagerou na dose de padrões, que aliás mudam ao sabor de leis ou decretos.

Embora a cidade tenha, como prefeito, um bispo de uma igreja que se inscreve dentre as que têm origem na revolta calvinista contra as indulgências papais, acabam de anunciar nova rodada de perdão, quando se espera arrecadar R$ 300 milhões.

É verdade que a mais-valia não nasceu nessa administração, tendo sido noticiado que a anterior arrecadou, com a mesma manobra, um bilhão dessas moedas. 

Porém, agora chega-se a aventar que desconformidades urbanísticas, ainda não perpetradas, possam ser ajeitadinhas, pagando-se por antecipação. Mais-valerá. Na prática, vende-se índice construtivo sem qualquer critério, com único objetivo de arrecadar. É o mais-vale-tudo.

Não sei de Papa que tenha vendido indulgência para vindouros malfeitos.

Por outro lado, observam-se altas doses de hipocrisia: incentivam-se varandas, isentando-as do cálculo de áreas construídas. E se as incentivam, é razoável supor que haja motivo para que existam, como espaços abertos.

Mas em seguida, por argumentos exatamente opostos, permite-se que se as fechem... desde que se pague por isso, restando apenas repetir Marx, só que desta feita, Groucho:

“Temos princípios. Não satisfazem? Temos outros”. Com a vantagem de que podem ser pagos em qualquer agência bancária, até a data do vencimento. 

* Arquiteto – urbanista DSc