ASSINE
search button

Campos de segregação? Já vimos esse ?lme e morremos no ?nal

Compartilhar

No dicionário Michaelis, o substantivo feminino xenofobia tem dois significados. O primeiro é o mais popular: “Aversão ou rejeição a pessoas ou coisas estrangeiras”. O segundo me parece mais preciso: “Temor ou antipatia pelo que é incomum ou estranho ao seu ambiente”. Vivemos essa semana um pesadelo xenófobo de proporções bíblicas. Os campos de segregação/ gaiolas onde o governo americano de Donald Trump guarda crianças estrangeiras cujos pais, em débito com a imigração do país (seja por ilegalidade na permanência pura e simples, seja por irregularidade nos documentos) se encontram detidos. Nada menos que 2.300 menores estavam nessa situação, incluindo 49 brasileiros, até que a pressão internacional obrigou Trump a suspender a separação das crianças de seus pais na quarta-feira. O papa Francisco qualificou a decisão de Trump como o que ela verdadeiramente é: “um ato imoral”. 

Mas a política de tolerância zero dos EUA continua com a criminalização dos imigrantes ilegais, prática, aliás, comum em países em diferentes estágios de riqueza. Tanto que a Hungria prepara uma lei que criminaliza a ajuda a refugiados. Nenhum país, no entanto, jamais separou famílias desta forma e há maldade e crueldade nisso. Tanto que o próprio Trump teve que admitir e recuar depois de ouvir argumentações de sua própria família de que aquilo não fazia sentido. 

Xenofobia é um tema que me diz respeito de perto. Sou descendente de norte-americanos – olha a ironia – confederados que imigraram para o Brasil após o fim da Guerra Civil, em 1865. Fugiam de um país que decidiu abolir a escravidão para um país onde ela ainda resistia e sustentava o ápice do ciclo do café e os estertores do ciclo da cana de açúcar aqui e ali. Foi uma onda migratória abençoada pelo imperador D. Pedro II, que queria modernizar a agricultura local do século XIX importando o sistema de “plantation” junto com os americanos. Foram abraçados por uns, hostilizados por outros. Isso dá um livro cuja pesquisa eu já iniciei, mas essa é outra história. 

O episódio das crianças em campos de concentr... quer dizer, segregação fez aflorar aqui no Brasil o que de pior temos a respeito do problema, que é a desumanidade e a falta de empatia com o estrangeiro imigrante. Porque não se iludam: pouca gente larga suas raízes e suas origens porque acha divertido. Na sua imensa maioria, as pessoas buscam outros países – de refugiados da Síria à classe média brasileira em Portugal – porque estão fugindo de miséria, violência, perseguições e, todos – eu digo todos – buscam uma vida melhor, mais tranquila, mais segura, mais confortável para si e sua família. A ONU informou na semana passada que nunca houve tantos refugiados por conta de conflitos ou desastres naturais no mundo. Nada menos que 69 milhões de pessoas. 

Nas mãos de gente imoral, xenofobia é uma útil estratégia política. O próprio Trump usou dela. Bernardo Mello Franco, do “Globo”, observou em sua coluna que o fenômeno vai desembarcar por aqui. Já se vê isso nos comentários das notícias sobre a gaiola de Trump nos portais de notícias e redes sociais. Bernardo lembra, para quem já se esqueceu: “No ano passado, militantes de ultradireita fizeram barulho contra a nova Lei de Migração, que assegurou direitos básicos aos imigrantes. O texto teve apoio suprapartidário: foi apresentado por um senador do PSDB e relatado por um deputado do PCdoB. Isso não conteve os protestos. Uma marcha na Avenida Paulista terminou com quatro manifestantes detidos. O presidenciável Jair Bolsonaro tenta surfar a onda da intolerância. Ele já chamou de ‘escória do mundo’ imigrantes de países como Haiti e Síria. Depois defendeu a construção de campos de refugiados para isolar venezuelanos em Roraima, sob a alegação de que ‘já temos problemas demais aqui’. 

Nesta década, o Brasil recebeu uma onda de imigrantes que hoje, apesar do burburinho na mídia, ainda se restringe a 1% da população. Não é gente capaz de “roubar o emprego do brasileiro” sob nenhum ponto de vista. A onda inclui haitianos fugindo das devastações causadas pelo terremoto (que eu acompanhei de perto em Porto Príncipe), africanos fugindo de perseguições políticas e misérias, sírios fugindo da guerra civil e, mais recentemente, latinos fugindo de conflitos locais e pobreza, caso da Venezuela. É óbvio que uma enxurrada de imigrantes ilegais em estados pequenos como Roraima ou Acre pode causar muita instabilidade. Mas é para isso que existem os governos e a questão precisa estar na pauta de Legislativo, Executivo e Judiciário em todos os níveis com urgência. É preciso mitigar os impactos, facilitar a integração, aproveitar talentos (nem todos os imigrantes são mortos de fome) e, principalmente, entender que toda essa gente não está aqui para “explorar nossas riquezas”, “roubar nossos empregos” ou “destruir nossa cultura”.

Não se iludam: temos brasileiros qualificados e eleitos empenhados até o pescoço nestas tarefas.