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Aquarius

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Termômetro da crise de indiferentismo que assola nossa sociedade, a questão migratória continua a mostrar-se um sintoma terrível e de alta negatividade. O barco Aquarius, que transportava mais de 600 migrantes – entre eles sete mulheres grávidas e mais de cem menores desacompanhados – resgatados da costa líbia, permaneceu por vários dias parado no meio do mar. Esperava poder atracar em algum porto italiano ou na ilha mediterrânea de Malta.  Porém, ambos os países recusaram-se a abrir seus portos para acolhê-lo.

O ministro do interior da Itália, Matteo Salvini, tuitou uma declaração seca e cortante: “Salvar vidas é um dever. Transformar a Itália em um enorme campo de refugiados, não. A Itália não vai mais ceder e obedecer. Desta vez, há alguém que diz não”. Enquanto isso, os migrantes aguardavam, o sol queimava e as provisões escasseavam. E o ministro seguia convicto de que, naquela situação, acolher os migrantes do Aquarius não equivalia a salvar vidas. 

O exército de Malta não abriu os portos para o Aquarius, mas levou a bordo provisões para 24 horas.  Foi quando brilhou, como luz de esperança, a decisão do recém-eleito presidente da Espanha, Pedro Sánchez. A Espanha acolheria o barco para “evitar uma tragédia humanitária” e abriria o porto de Valência. 

Acompanhando a decisão de Pedro Sánchez, várias cidades e regiões do país se comprometeram a receber um determinado número de passageiros do Aquarius: o País Basco, a cidade de Madrid, a região de Baleares, entre outras. Barcelona havia oferecido seu porto antes do pronunciamento do presidente, que acabou por escolher Valência para o desembarque dos refugiados.  

Diante de uma Europa que parece criar um crescente bloqueio antimigrantes e uma mentalidade cada vez mais hostil ao acolhimento deles, a Espanha aparece como exceção de solidariedade e humanidade.  Mesmo nos tempos mais agudos da crise migratória, a política espanhola evitou voltar as costas aos refugiados e transformá-los em bodes expiatórios.  E o recém-empossado presidente marca, sem dúvida, um ponto político e diplomático adotando uma posição de acolhimento diante do fechamento de seus dois vizinhos.

Apesar dos insistentes apelos do Papa Francisco em favor dos migrantes, nem mesmo os católicos parecem sensibilizar-se para a grande tragédia que representa a rejeição dessa imensa massa de pessoas que fogem da violência, da fome, da morte, enfim, de seus países de origem.

Na França, recente pesquisa feita pela revista “L´Express” mostrou que, entre os católicos ouvidos, menos da metade se declarou aberta à acolhida dos migrantes. E mesmo os que são mais lúcidos e positivos sobre essa questão revelam um alto nível de pessimismo em relação ao sucesso da integração dos estrangeiros que batem às portas de seu país.  A maioria crê que eles não conseguirão integrar-se. 

Trata-se realmente de uma tragédia, mas de dupla dimensão. Por um lado, a tragédia real dos migrantes que atravessam longuíssimas distâncias, enfrentam um sem número de dificuldades e perigos em busca de uma vida com um mínimo de decência para si e suas famílias. Tantos encontraram a morte enquanto buscavam a vida. 

Não menos grave, porém, é outra tragédia, de igual ou senão maior peso. Trata-se da incapacidade crescente que se percebe nas sociedades ocidentais de abrir espaço para a hospitalidade e o acolhimento do outro que precisa de ajuda. Rejeitar e mandar de volta pessoas que saíram de suas pátrias porque não têm outra opção para continuarem vivas é algo muito grave. 

Parece que o migrante é alguém que, por não ser cidadão do lugar onde procura a chance de uma nova vida, não é plenamente humano. A ética, os direitos humanos e todas as instâncias que regem o funcionamento de uma sociedade reconhecem ao estrangeiro e ao migrante os mesmos direitos permitidos a todo ser humano.  No entanto, por interesses econômicos e uma malsucedida política de fronteiras, os refugiados são cada vez mais considerados por muitos uma ameaça aos interesses dos países onde desejam se instalar. 

O “sintoma” do estrangeiro sublinha os limites dos estados-nação e a consciência política que os configura.  Interiorizamos essas limitações e tendemos a reagir com a convicção de que estrangeiros e migrantes não gozam dos mesmos direitos que nós. Porém, urge tomar consciência de que a dignidade humana pertence aos seres humanos, quaisquer que eles sejam, independentemente de seu reconhecimento pela lei, ou da posse de papéis que atestam sua cidadania. 

Enquanto o Aquarius e seus passageiros distribuídos em embarcações auxiliares singram rumo à Espanha, essa grave questão se levanta sempre com mais força. Está em jogo não a nossa cidadania, mas a nossa identidade de seres humanos. 

* Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ