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Quem mata quem no Rio de Janeiro?

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Nos anos 1970, durante o regime militar, jovens que iniciavam carreiras no crime perceberam que assaltar bancos era muito arriscado e que o tráfico de drogas era mais fácil e lucrativo. Transformaram, então, a composição e a organização das chamadas “bocas de fumo” no Rio de Janeiro. A PM, já então encarregada do policiamento e da repressão, agia em favelas e conjuntos habitacionais com métodos usuais na época para coagir criminosos. Começara a dialética corrupção/manutenção do negócio/abuso da força/violação de direitos. 

Nos anos 1980, começou a guerra entre traficantes, reforçada pela rivalidade entre os comandos criados nas prisões, que já se interessavam pelo tráfico como forma de financiar suas organizações. A corrida armamentista, para dissuadir rivais de invadir favelas dominadas, exigiu a compra de mais e mais armas de fogo, bem como o treinamento de jovens para a “guerra”.

Falta de investigação, registros mal feitos e ausência de transparência nas operações policiais e militares aumentam o número de casos de homicídios sem resolução. Policiais apresentam seus próprios “fatos” como se fosse o que ocorreu, moradores desmentem os policiais e anos se passam sem que os responsáveis pelas mortes sejam processados e punidos. Para os moradores, restam os gritos roucos para ouvidos moucos: “queremos justiça”. Para os policiais, fica a impossibilidade de melhorar o policiamento e as operações, pois não há evidências para orientar as práticas e avaliar os agentes envolvidos. Prevalece a reação e a incapacidade de responder aos eventos seguindo protocolos e planos da corporação. 

Esse é o nó que mantém o policiamento em níveis baixos de eficácia e em mortes de jovens, recém-saídos de um baile, ou de profissionais da segurança surpreendidos com tiroteios. Cabe perguntar: onde está o sistema de gerenciamento de risco e o planejamento da ação que deixe claro para os moradores do local e os próprios policiais quais são as regras a serem seguidas? 

Para superar a constrangedora cena de acusações mútuas entre policiais e moradores, os órgãos de segurança devem buscar a transparência e a legitimidade, mais eficácia e menos violência, ou seja, menos mortes desnecessárias. 

Movimentos sociais têm denunciado o extermínio dos jovens negros no Brasil. A afirmação é feita como se houvesse uma política oficial, explícita e persistente em matar jovens negros, uma política racista e de crime contra a humanidade. Mas nenhuma política de extermínio foi implementada. No máximo, há efeitos não intencionais de políticas repressivas praticadas por policiais mal preparados em governos dirigidos por políticos indiferentes ao destino dos cidadãos mais pobres. 

As palavras têm importância simbólica. Ao insistir que se trata de genocídio não se está, sem intento, impossibilitando relações menos conflitivas entre moradores, jovens ou não, e policiais?

Não se pode negar o morticínio de homens jovens negros no Brasil. Falar das mortes cometidas por agentes do Estado é de crucial importância para termos uma polícia comprometida com o Estado de Direito que não abuse do uso da força, especialmente das armas que legalmente portam. A participação das polícias nessas mortes representa uma vergonha para o país. 

No entanto, falar apenas delas provoca não só uma grave distorção dos fatos, mas também o fortalecimento de atitudes reativas de policiais que se sentem injustamente culpados pelas mortes que eles sabem ter outros autores. As denúncias assim postas, feitas há tantos anos, conseguiram resolver o problema da segurança pública? O peso das culpas, postas só nos ombros dos policiais, ficou insuportável.

A tese do genocídio negro, embora baseando-se em dados estatísticos que mostram maior concentração de homicídios entre os negros no Brasil, não considera as diferenças de local de moradia, escolaridade, renda familiar e outras variáveis. Mas pode estar estimulando o ódio aos brancos, especialmente os mais próximos e acessíveis, à classe média espalhada por todas as áreas de planejamento da cidade do Rio de Janeiro, inclusive nos subúrbios cariocas, onde estão 50% das favelas e onde a incidência de roubos e homicídios é maior do que nas demais. Há também concentração de vítimas de crimes violentos nessa área onde a maioria é pobre, mas abriga parte da classe média, branca e não branca.

* Antropóloga, coordenadora do Núcleo de Pesquisas das Violências (Nupevi) da Uerj