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A cidade como obra de arte

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Pedro Martins, 16 anos, desconfiou quando viu na mesma rua (tendo percorrido menos que 400m) placas indicando “obras a 300m”; “200m” e “100m”. Havia, também, ao lado dessas, a expressão “cuidado, obra”. Temendo ser interrompido por tantas obstruções (em amarelo e preto), preferiu voltar para a grande avenida, onde morava Geraldo (seu pai) e com ele visitar um museu. Para Pedro e Geraldo, esse é o lugar onde deve estar a obra de arte; somente aí. Na cidade, parece que o termo “obra”, em vez de denotar “construção” indica “atraso”; em vez de “descoberta”, o “perigo”. 

Na contramão dessa primeira semiótica, o que ocorreria se esse mesmo enunciado se ressignificasse a tocar a cidade como escultura? Da epígrafe de Aristóteles, onde tem-se a concepção de que “uma cidade é construída por diferentes tipos de homens” e que “pessoas iguais não podem fazê-la existir”, passando pela retomada da sensorialidade na “Carne e Pedra” de Sennett ou a ontologia gestual de Lázaro quando “ninguém pode roubar seu sonho, pois seu sonho é só seu”, até chegar à “cidade como currículo” de Bonafé, visualizada a rua como “uma aula, uma lousa, um lugar onde se escreve”, em que ponto essas narrativas se cruzam? Escadas, bancos, postes, faixas de pedestres, paredes, fachadas de prédio etc. Cada elemento pode gerar novas possibilidades de interação; mas vai além disso. À parte do concreto, sensações. 

A rua com o passar das horas vai ficando mais deserta; uma ou duas pessoas surgem. Somente isso já serviria de material à investigação (na cidade) para quem a adota como suporte técnico e criativo. Às vezes, alguém de bicicleta aparecia e nos olhava a fim de entender o que fazíamos (mas éramos nós que os olhava e redimensionava-os pelo fazer artístico) - uma bicicleta com uma pessoa em cima não é apenas uma bicicleta com uma pessoa em cima; envolve uma alavanca, um peso, um vetor, uma atitude. Percebe-se em seguida a sensação de que esse móvel gera na recepção de quem o vê surgir; no breu e no susto que o leva à inércia. O móvel, curiosamente, produz a inércia ou, minimamente, uma pausa no movimento do outro. Um morador em “situação de rua” desenha na parede uma casa; algumas viaturas policiais também passavam - o espaço entra em tensão com a nossa presença; uma ameaça (sem armas, propriamente ditas) aos dispositivos de contenção e controle. O corpo, apresenta-se como política e dessa vez seu altar é a rua. Situada uma descrença generalizada quanto à política tradicional, veem-se outros agenciamentos dos indivíduos e grupos. Nos vértices de cada esquina, na polifonia, no vazio dos terrenos baldios e nas avenidas engarrafadas de carência, aparece o artista (direi noutro momento o “terrorista”); sua obra, seu corpo, sua tinta, sua palavra potencializando arquiteturas e redes de sociabilidades. 

Deste encontro, novas configurações subjetivas se protagonizam subsidiando estratégias de “desobediência” aos sistemas dominantes. Perscruta-se a produção de um redesign urbano a partir da diversidade; o acesso aos bens culturais e simbólicos presentes na cidade; por que não dizer, a construção de outra cidade? O espaço público aparece como campo de conflito e espelho da criação; território ilimitado no enfrentamento das barreiras burocráticas e penais que delimitam a fobia e a militarização do espaço urbano – não é para tirar da rua, é para ocupá-la! Trata-se de biopoder e o agir de uma multidão prestes a devorar aquilo que caotiza a moralidade do consumo, questionando-o e enfrentando tais poderes na formulação de outros debates sobre o reconhecimento às novas gramáticas políticas situadas na contemporaneidade. Há um texto na cidade e com a cidade; em atravessamento, que ao invés de gerar uma fôrma, requer formas; geometrias. Mais que contato, tato com... Pedro, a cidade não é mesmo um museu, mas uma experiência estética e sensorial em movimento; a obra de arte que jamais repousa, para não deixar de citar Benjamim. A cidade é palco e é aqui que eu moro. Pode chegar!

 * Antropólogo