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As razões de todos nós e a razão do bem comum

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Hoje, velhos amigos  conversam com a cautela de quem patina em gelo fino. Os almoços de família se tornam  retiros espirituais, onde só falam os que, pela santidade, não correm o risco de serem contestados. Viramos um país  de refugiados, de traídos rancorosos. Mais grave, perdemos estímulo para buscar um terreno comum, um ponto de apoio, um abrigo seguro. Há, em nossos olhares mútuos, lampejos  de inconfessada hostilidade. Disfarçamos nossas distâncias por meio de falsas convivências: uma sessão de cinema, uma passada pela livraria,  uma missa de sétimo dia de mais um que se foi. 

Não há sequer aquele momento em que o vencedor sorri, condescendente, diante do vencido. Não há generosidade entre perdedores. A derrota não é solidária. E, nos tempos em que vivemos, somos todos derrotados. Pouco importa se acreditou em alho ou bugalho, você foi ampla e irremediavelmente traído. Diante de sua amargurada decepção, desfilaram e desfilam as mais abjetas vilanias, os mais fétidos humores da raça política. Penetram seus ouvidos, sem cerimônia, as propostas rasteiras dos prostíbulos dos guardiães do tesouro, do nosso tesouro, dilapidado com escavadeiras à luz do dia e com carteados no silêncio da noite. Vagos e iluminados profetas do nirvana, reais cavaleiros do apocalipse, transformam nossa cidade 

numa campa a céu aberto. Morre-se  de tiro, de bala perdida, de hospitais fechados, de escolas falidas. Nossa política econômica, último pastelão da pandemia financeira, encolhe a qualidade de vida e erradica a perspectiva de crescimento de um país que você acreditava “abençoado por Deus e bonito por natureza”. 

Nesse quadro, espraia-se um efeito colateral perverso, primo-irmão do anarquismo. Um sentimento de abulia que nos empurra para derrotas mais profundas. Há uma óbvia tendência a nos afastarmos dessa política nefanda e dela não querer sequer ouvir. Infelizmente, nesse egoísmo cívico, contribuímos para o aprofundamento das crises e reforçamos a espiral do desatino. Ao invés de vítimas, nos tornamos cúmplices do desmonte do país e do esgarçamento de seu tecido social. Uma forma de suicídio global. Com gotas de dormir. 

O derrotismo social, como a depressão individual, é o sintoma espelhado no mito de Sisifo, eterno recomeço de uma inutilidade. Mas temos outros caminhos. Por enquanto, pelo menos. E esse caminho é o voto, cuja proximidade se cristaliza como a única saída possível. A derradeira, antes que o país se torne uma colônia da bacanal financeira. E esse voto deveria ser precedido por uma profunda investigação. Devemos estimular a mídia a esquecer os sovados perfis de candidatos e nos facilitar uma realística análise de seus programas, linha por linha, ponto por ponto, mentira por mentira. Não devemos votar em pessoas, mas em programas de governo que não façam do ajuste fiscal o estigma de uma civilização. Não devemos votar em quem prossiga no empobrecimento de nossa população. Não votaremos em quem penalize crianças e idosos em nome do equilíbrio das contas. Não votaremos em quem queira privatizar o Brasil ou armar sua população para que a  violência bandida se transforme numa guerra civil larvar. A pauta neoliberal não está escrita no Novo Testamento, nas tábuas de Moisés, no Torá ou no Corão. Está gravada apenas na mente predatória dos descontentes com a evidente grandeza deste país e da autonomia desejada de seu povo. 

Não deixaremos, por falta de informação e de solidariedade, que nossos filhos e netos, que se encontram mais desesperançados do que nós, se afastem das urnas ou que nelas depositem refluxos do autoritarismo, que marcou nossa geração por um quarto de século, e que até hoje nos aterroriza por frequentes emanações de sua brutalidade, visível nos esgotos  de cúmplices agências de espionagem. É preciso contar a história do Brasil recente, antes que se torne permanente. E, sobretudo, não aceitaremos sofrer a sentença  do verso imortal de Guerra Junqueiro : “O povo? O povo é rei como Jesus, para beber o fel, para morrer na cruz”. 

* Ex-embaixador do Brasil na Itália ([email protected])