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Nada a temer; após privatizar, lave as mãos

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A economia brasileira  desce a ladeira, e os caminhões de frete fazem um “ponto fora da curva”.  A política de correção de preços da Petrobras é um modelo perfeito do privativismo neoliberal, aplicado a uma empresa de economia mista. O preço do combustível, referenciado ao dólar, sobre o qual não temos como interferir, mas de cujas oscilações somos sempre vítimas, torna irrelevante qualquer planilha de custos em reais. Episódio semelhante de capitalismo selvagem ocorreu com o gás de botijão. Muitas famílias passaram a cozinhar com lenha. O governo, preso à armadilha que se autoimpôs, se defronta com a greve e com o desmonte do pilar sacrossanto do ajuste fiscal. E a sociedade se vê sitiada pela escassez e pelo oportunismo. O acordo provisório deverá resolver temporariamente o problema. Duas conclusões se impõem: o Brasil necessita urgentemente de investimentos para diversificar a rede de distribuição de mercadorias, e o custo para solução do problema dos grevistas recairá sobre o orçamento, e, portanto, em maiores cortes de gastos.

De positivo, a retirada da privatização da Eletrobras da pauta de votações. Ponto para o Congresso. Privatizar a rede de energia elétrica seria um negócio da china. Ou da China. Difícil achar um país que tenha entregue, a mãos privadas, um instrumento tão óbvio da segurança nacional quanto o sistema elétrico interligado. EUA, não. França, não. Alemanha, também não. 

Antes que os “Chicago  boys” me chamem de energúmeno, sugiro que revejam a privatização da ferrovia do Reino Unido. Após poucos meses,  tornou- se deficitária e recorreu aos cofres públicos com a ameaça de suprimir linhas não rentáveis, caso não recebesse subsídios. Sua Majestade cedeu. A privatização foi, em suma, duplamente onerosa. Com a Eletrobras aconteceria igual ou pior. As tarifas aumentariam de imediato, o programa “Luz para Todos” sofreria apagão. O desemprego aumentaria. E 30 moedas seriam jogadas na redução do déficit orçamentário. Mas, à luz bruxuleante do FMI, o Brasil teria feito o seu “dever de casa”. 

Enquanto isso, cortes de gastos nas dotações de saúde pública chegam a revistas internacionais acadêmicas, como o “PLoS Medicine”. Em seu número de maio, analisa de forma mais profunda os dados que expus  no JORNAL DO BRASIL em meu artigo “Os anjos não cabem no orçamento”. O “PLoS” adverte, ainda, que o corte pode crescer ainda mais se os programas forem reduzidos pela lógica macabra do teto de gastos. O que a revista não refere é a outra ponta do problema. O governo concedeu aumento superior à inflação para remédios e, ao mesmo tempo, diminuiu os produtos oferecidos pela Farmácia Popular. A própria entidade sindical das farmácias acusou o golpe. Os remédios estão encalhando. E os idosos morrendo. Assim, conseguimos chegar à quadratura do círculo:  matar recém- nascidos e apressar a morte dos idosos. O ajuste fiscal merece. 

Fica apenas um gosto amargo na alma dos que lutamos contra os sanguessugas, na OMC e na  OMS, para suavizar um pouco a política brutal de propriedade industrial na área de medicamentos, empurrada goela abaixo pelos países industrializados. A duras penas, com o apoio da sociedade civil, fizemos do Brasil um modelo no combate à Aids e fomos identificados na ONU como exemplo na saúde pública e no combate à fome. Sim, não há dúvida: o Brasil voltou 20 anos em 2. Nunca uma vírgula foi tão mentirosa. 

Aliás, falemos português claro. O Brasil não voltou. Voltar tem o duplo sentido de renascer ou retornar ao ponto de partida. O chavão marqueteiro tenta nos persuadir que o progresso em dois anos foi maior do que os avanços sociais nos dois mandatos de FHC e nos dois de Lula. Ou seja, ao abortar os programas sociais desses dois ex-presidentes, o marqueteiro nos convida a acreditar que o Brasil teria renascido. 

Por que, senhor marqueteiro, dizer que o Brasil voltou? O Brasil regrediu, meu senhor. O Brasil se apequenou, minha senhora. O Brasil se expôs ao vexame e ao desprezo internacionais. O Brasil dá medo aos que aqui vivem, porque não se sabe de onde virá a foice mortal: da fome, da doença, da falta de hospital ,da bala perdida. Ou da vergonha. 

E ainda temos candidatos que nos prometem mais disso. Há até candidatos que sugerem armar a população e pintar de sangue os barracos das favelas e os guetos de nossas cracolândias.  Mas nas eleições temos nós, o povo, nós os vassalos, nós os contribuintes de um sistema tarifário injusto, o poder do voto e do veto. Nada a temer, portanto.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])