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Dois filmes, dois retratos de um país em transe

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São dois filmes aparentemente díspares, separados por quase 40 anos. Reveladores de momentos conturbados da história brasileira, que oscila entre a ditadura e a democracia. “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias (1982), é um thriller político, feito no auge da ditadura, época do “milagre econômico”, um dos primeiros a retratar a repressão de forma aberta. “O Processo”, documentário de Maria Augusta Ramos, em cartaz, tem foco nos bastidores do processo jurídico-politico que cassou, em 2016, o mandato da presidente Dilma Rousseff. Vistos em conjunto, constituem retratos de uma realidade dramática de um país extremamente polarizado, com toques fantasmagóricos da literatura kafkiana.

Maria Augusta trata o processo do impeachment com distanciamento. Em 137 minutos, uma síntese das quase 400h de material filmado acompanha o ritual dos acontecimentos iniciados com a aprovação da denúncia pela Câmara, sob o comando do deputado, depois cassado, Eduardo Cunha, até a cassação, pelo Senado, quatro meses depois. O início é impactante, com uma seleção de imagens grotescas das declarações de votos dos deputados. Bolsonaro faz o elogio ao torturador de Dilma, que Jean Wyllys repudia em tom emocionado. Com um trabalho de montagem criativo, entremeado de pausas e silêncios, acompanha os bastidores das reuni- ões nas duas casas do Congresso e no Alvorada, com closes nos rostos dos manifestantes na Esplanada, como num grande teatro.

Ao desvendar os meandros do golpe parlamentar que destituiu Dilma, o documentário assume um papel histórico de grande valor para a reconstituição futura daquele momento. O absurdo teatral do rito processual remete a “O Processo”, de Kafka, que se inicia com uma frase seca e perturbadora: “Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois numa manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum”. Josef K. acorda com os homens da lei em seu quarto. Dilma foi arrastada da Presidência pela articulação dos dois principais comandantes do golpe, Cunha e Temer.

Roberto Farias, morto aos 86 anos no dia 14 de maio, deixou vasta filmografia. É reconhecido como um artesão engajado e um dos precursores do Cinema Novo. “Pra Frente, Brasil”, um de seus clássicos, conquistou o prêmio máximo do Festival de Gramado, em 1982, e representou o Brasil no Festival de Berlim, no ano seguinte. Antes, teve que enfrentar a censura e aguardar oito meses para sua liberação.

Junto a um grupo de jornalistas vi o filme, ainda sob censura, numa sessão clandestina numa salinha da Embrafilme, em Botafogo. Todos tinham medo. Saímos impactados com as cenas de tortura. Um trabalhador de classe média é preso por ter dividido um táxi com um subversivo. Levado para uma casa no subúrbio é torturado ao som dos gols da final Brasil e Itália, na Copa de 1970, no México, e da marchinha do tricampeonato que virou hino da ditadura: “Pra frente, Brasil.”

O Exército não é mostrado. O grupo que faz a repressão política é composto por policiais civis que seriam financiados por empresários. A Fiesp e a Firjan se associaram à criação e manutenção dos DOI-Codis na época. O filme de Farias provocou uma grave crise e a demissão do presidente da Embrafilme, embaixador Celso Amorim, por ter aprovado e concedido financiamento para a produção.

A jogada de mestre de Farias foi ter escolhido para título de seu filme o nome da marchinha ufanista que fez enorme sucesso na Copa de 1970, “Pra frente, Brasil”. Enquanto, de um lado, se torturava e matava nas prisões, a canção com letra de Miguel Gustavo entoava, sem parar, nas rádios e televisões. Noventa milhões em ação/Pra frente Brasil, do meu coração/ Todos juntos, salve a seleção/ De repente é aquela corrente pra frente/ Parece que todo o Brasil deu a mão/ Todos ligados na mesma emoção/ Tudo é um só coração.

Irritante para os ouvidos dos que sabiam o que estava acontecendo nos porões. A ditadura usou o título de campeão mundial no México, a censura à imprensa e o milagre econômico artificial criado pelo ministro Delfim Neto para criar um clima de euforia no país do “ame-o ou deixe-o”. Com as cenas violentas de um Estado policial que torturava, o filme de Roberto Farias desmascarou a farsa.

O documentário de Maria Augusta Ramos, prêmio do Júri Popular no Festival de Berlim, melhor longa no Festival Documenta de Madri e aplaudido em Cannes, desmascara outra farsa, a do golpe que derrubou Dilma. Sem fazer uso da palavra golpe, mostra o cadáver da democracia no impeachment. Às vésperas de uma nova Copa do Mundo, o país está diante da maior regressão econômica de sua história. O Brasil não foi para a frente, como alardearam os golpistas.

* Jornalista e escritor