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Herança maldita

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A divulgação de relatório da CIA, relatando a posição do governo Geisel sobre o expediente de eliminação de “subversivos”, causou importante impacto entre nós, particularmente nas redes sociais. O relatório de Colby a Kissinger registrava que Geisel ficara num primeiro momento indeciso sobre o assunto, concordando depois, desde que aprovado, antecipadamente, por Figueiredo. Era fácil perceber, para quem lembra um pouco daqueles dias, que precisava ele coibir um grupo mais radical do comando das casernas, que tinha autonomia para decidir sobre a vida dos “subversivos”. 

Essa posição foi desafiada por Silvio Frota, ministro do Exército, que depois da execução de Herzog e Manuel Filho, acabou sendo afastado do comando em 1977. Ora, não se pode, pois, dizer que passaram diretamente por Geisel/Figueiredo todas as execuções pós 1974. Frota, aliás, era o candidato a presidente da linha dura, sendo Figueiredo seu oponente. 

Mas é verdade que, com a queima de arquivos secretos de nossas Forças Armadas, tínhamos somente indícios e depoimentos (sem delação premiada), de que algumas execuções foram autorizadas, sim, e não seria difícil entender que os combatentes da guerrilha do Araguaia caíram na categoria dos “subversivos perigosos”. 

O comentário oficial da embaixada americana, de que Geisel procurou conter a repressão “extra-legal”, encontra eco no fato que, em 1977, Carter assumiria o governo americano com uma agenda de defesa de direitos humanos, incentivando a derrocada dos governos ditatoriais da América Latina, na sua linha de enfrentamento à União Soviética. Ao conceder asilo político a Leonel Brizola, em 1978, Carter assinara, de fato, o fim do regime no Brasil. Não consigo entender, portanto, a posição de quem veio a público condenar a divulgação do documento. Não é possível misturar alhos com bugalhos: a ditadura militar encerrou um período de crescimento do país, dentro do regime republicano democrático, tanto com Getúlio, como com Juscelino e Jango. No governo Figueiredo, o país viveria uma recessão acentuada (1980-83), sem alteração maior no quadro deixado por Geisel. 

A importância histórica desse documento é muito grande, portanto, por razões para muito além do projeto econômico evocado. Se os agentes da ditadura agiram como criminosos e para eles estava reservada a compreensão e encorajamento superiores, como esperar que reagiriam os agentes da lei já no período democrático, em que foram, aliás, ainda comandados por algumas dessas tristes figuras da repressão? Quem não lembra dos esquadrões da morte, de um Fleury e de um Erasmo Dias para centrar em São Paulo, tipificando quem tinha carta branca para matar e desovar cadáveres? 

A anistia negociada preferiu acreditar que não precisava punir os criminosos que estavam no poder. O resultado, entre outros, é a tragédia nacional com a questão da violência. No Brasil, para citar uma estatística recente, em 2016, foram registrados 61.619 assassinatos, mais do que o total de jovens americanos que morreram no Vietnã em sete anos de guerra. E qual a taxa que o leitor esperaria no Vietnã? O número total de assassinatos, em 2016, foi de pouco mais de 1.300 pessoas – taxa de 1,3 por cem mil habitantes. 

O nosso “excesso de assassinatos” é fruto de uma guerra de extermínio consentido contra jovens das classes populares. O drama dos que são atingidos pela barbárie são manipulados ao máximo pela mídia, que sempre receita mais repressão e condenações extrajudiciais.

Frequentemente, há eliminação dos vestígios da ação policial ou paramilitar, um aprendizado histórico para disseminar a dúvida sobre a autoria. E na agenda da brutalidade estão os jagunços modernos expulsando índios e posseiros. 

Não há dúvida que há outras variáveis em jogo; todos falarão do combate às drogas e, no mínimo, diremos que essa é ineficiente ou equivocada se o resultado é esse que temos: insegurança generalizada no país. Quanto mais polícia, menos investimentos sociais, essa é a triste equação que as classes mais favorecidas propugnam para sua ilusória segurança, até que encontram a saída pelo aeroporto. Precisamos encarar de frente a nossa história e mudá-la. Nem nossa midia e polícia, com ou sem intervenção militar, o farão. 

Para vencer as drogas precisamos de inteligência e coesão social. Um pedido formal de desculpas à nação pelos militares, que não podem ser considerados herdeiros de nosso passado sombrio, ajudaria a promovê-las. 

No entanto, a inexplicável “pressão” do ministro da Defesa, às vésperas do julgamneto do habeas corpus do ex-presidente Lula, nos distancia mais do dia em que poderemos confiar que, em vez de pressionar uma instituição civil de modo desastrado, poderemos contar com a voz dos militares nos assuntos de segurança e soberania nacional, como é seu dever constitucional. 

* Médico-sanitarista; ex-secretário de Saúde do governo Brizola