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De questões econômicas e pecuniárias

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No dia 6 de janeiro de 2018, a Congregação para a Doutrina da Fé, órgão da Santa Sé, reformado por Paulo VI, sob inspiração do Concílio Vaticano II, divulgou o documento “Oeconomicae et pecuniariae questiones”: Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro. Já na abertura, o texto de 16 páginas revela preocupações com o desempenho da economia descontrolada pelas estripulias da finança: “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real... o dinheiro deve servir e não governar!”. 

Há quem argumente, com razão: não fossem os bancos e os negócios do dinheiro, assim diria KarI Marx, o capitalismo estaria resfolegando (se é que estaria) nos tempos da carroça, do fogão a lenha e da poupança escondida, em notas graúdas ou miúdas, sob o colchão. Mas o dinheiro que, para o bem e para o mal, sacoleja nas rodas do capital financeiro, não raro, é fonte e instrumento de movimentos desvairados de valorização dita “fictícia” da riqueza encarnada em títulos, ações e propriedades imobiliárias. 

O filósofo-especulador George Soros, em recente depoimento ao Congresso americano, desautorizou as teorias que tratam de analisar os mercados financeiros a partir dos pressupostos da “eficiência”, ou seja, do comportamento racional dos investidores que avaliam a formação de preços dos ativos a partir dos “fundamentos”. Soros sustenta que “percepções equivocadas podem levar à formação de bolhas... e tais movimentos reforçam as tendências prevalecentes até o momento em que a distância entre a realidade e a percepção da realidade pelo mercado se torna insustentável”. 

Assim foi em Amsterdã, no episódio da Tulipomania, um antepassado modesto dos grandes crashes dos séculos 20 e 21. Entre 1634 e 1637, os investidores holandeses, muitos de classe média, especularam furiosamente com a possibilidade de negociar a preços cada vez mais elevados os bulbos de tulipa, que, ademais, tinham a vantagem de exigir muito pouco ou nada para a sua reprodução. Na base das expectativas exacerbadas a respeito da evolução do preço das tulipas estava o Banco de Amsterdã e sua capacidade de estender o crédito e suportar o avanço da especulação. 

Desde a Tulipomania de 1634, passando pelas crises cada vez mais frequentes do século 18 (como a Bolha dos Mares do Sul, em 1720), e chegando aos desastres financeiros do século 20, o que mais impressiona o observador é a semelhança entre episódios tão diferentes. 

Primeiro é a fantasia do enriquecimento rápido. Segundo, a formação de um consenso sobre o ineditismo das circunstâncias que parecem justificar a valorização rápida dos papéis; terceiro, o envolvimento dos bancos na especulação, fornecendo crédito abundante para alimentar a euforia; quarto, o avanço do endividamento dos investidores, disfarçado pelos valores cada vez mais inflados da riqueza financeira ou imobiliária; quinto, a “correção de preços”, decepção e quebradeira. 

Na posteridade do crash de 1929, o Congresso dos EUA votou o Glass-Steagall Act, que proibiu o envolvimento direto dos bancos em operações nos mercados de capitais e imobiliários. O mundo das finanças viveu relativa calmaria, nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída à chamada “repressão financeira”. Essa incluía a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities), a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juro (Regulation Q, nos Estados Unidos) e restrições ao livre movimento de capitais. 

* Economista