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A preservação do‘Medo Ambiente’

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Não, não culpem o revisor: a expressão “medo ambiente” foi criada por Zigmunt Bauman, para se referir ao mal-estar da nossa era e, escrevendo em polonês, não há de ter procurado produzir o delicioso trocadilho que resultou na nossa língua, e que tão bem se aplica aos tempos que vivemos: o medo do outro. Uma era é “heterofóbica”.

O afastamento do outro tem sido o principal propósito do que poderíamos chamar de urbanismo nutella, e, se digo isso, ainda é por conta do incêndio no Centro de São Paulo, pelo tanto que já se comentou sobre esvaziamento, deterioração, abandono e uma série de outros atributos que não se sustentam ao se variar o observador. Por exemplo, ao se ver a foto aérea da cracolândia, poder-se-ia tudo dela dizer, exceto que esteja vazia. Porém, como discurso salvador, surge logo: revitalização do Centro.

Adensamento - ou rarefação urbana - aliás, não pode ser encarado como algo, em si, positivo ou negativo: um valor a ser perseguido como definitivo em um projeto de urbanismo. Densidade será sentida diversamente, variando de época, local ou cultura. A noção de cheio ou vazio não é absoluta, ou não existiriam blocos de carnaval, paraíso intencional do atravancamento e da busca, encontro ou esbarrão com o outro.

Porém, sob um certo ponto de vista, os centros históricos foram, de fato, abandonados, principalmente por um determinado tipo de morador, que se afastou tanto dali que termina por desconhecê-lo, e tudo o que quer é ir ter com seus iguais. Os americanos chamam a isso de suburbanização.

Subúrbio chega às nossas cidades e toma significado distinto, bastando lembrar que, até poucos anos, o Rio era dividido em zonas urbana, suburbana e rural. Essa última é de fácil compreensão, mas as duas primeiras classificações são apenas fruto da heterofobia a que Bauman se refere. Por serem atendidos por linhas de trem, não por acaso, subúrbios se dividiam como da Central ou Leopoldina e, logo, esse tipo de transporte foi associado à classe trabalhadora.

Suburbano foi por aqui sinônimo de mau gosto, e ainda apelando a Bauman: “o estranho é odioso e temido... não necessariamente em todos os momentos nem em todas as partes”. “Sobretudo nos domingos, subitamente, há deles demais”, reforça Max Fritsch.

Ou seja, estranhos podem servir à mesa. Comensais, jamais.

Em cidades como o Rio, em que o forte declínio das atividades econômicas se alia à insegurança, aparentemente generalizada, das classes mais favorecidas, o resultado se recrudesce, alcançando patamares dramáticos.

A opção rodoviarista para se chegar à Zona Sul e, posteriormente, à Barra, não terá sido gratuita. Nem o privilégio dado ao transporte privado, garantindo o afastamento do outro, até mesmo durante o simples deslocamento viário. Vidros escuros e latarias blindadas: o passo seguinte.

A fuga dessa parcela da população, não só do Centro Histórico, mas de todos os bairros tradicionais, aqui no Rio, inaugura os assentamentos suburbanos, de padrão norte-americano: os condomínios, que além de não prescindirem do automóvel, exigem mais espaço, não só por sua baixa densidade, mas pelo aumento do tamanho de casas e equipamentos urbanos demandados. Além de uma perda espantosa de área infraestruturada, gasta para estacionar veículos.

Terrenos têm preço. Determinado por metragem quadrada e pelos serviços públicos que lhes chegam. Agora, pense rápido: quanto custa manter um carro parado, ao longo da rua, e, se há outra forma, tão deslavada, de apropriação privada de um bem público que nos é permitido?

Pense em um sofá-cama ocupando uma vaga de carro. Estranho, não é? Carro é nutella. Sofá no asfalto é raiz.

É dessa estranheza que tanto falam. Dessas outras formas de apropriação de espaços públicos ou, no caso dos imóveis vazios, sabe-se lá de quem. Vazio é ausência de ocupação. E fica a pergunta: E o medo? Vem do vazio ou da ocupação? 

* Arquiteto, urbanista DSc