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Racismo: ainda impregnado; ainda ignorado

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Racismo é uma falha cognitiva, uma incapacidade do cérebro humano de armazenar e processar os afetos do mundo de maneira clara. Deixemos de lado qualquer discussão sobre raça em um sentido biológico, haja visto que esse é ponto pacífico. Concentremo-nos na tendência da mente humana em criar padrões que consigam mapear o mundo, que o tornem, na medida do possível, o mais seguro e acolhedor possível. Criar as constelações, ajuntamentos imaginários estelares, buscar relações entre as vísceras animais e acontecimentos futuros, ver um coelho na Lua ou construir uma relação clara entre a hipotenusa e os catetos de um triângulo, todos atos que frutificaram da tendência humana a buscar padrões no mundo.

Mas no Universo não há padrão, as estrelas no céu só formam ajuntamentos sob a perspectiva humana; o coelho na Lua não passa de uma pareidolia, a comum falha de atribuirmos significados a um estímulo completamente aleatório. A aurospicina, arte oracular da Babilônia de ler as vísceras animais, que “evoluiu” para a antropomancia, que lia a sorte nas vísceras de humanos agonizantes, tentativa torpe da mente de controlar o mundo buscando relações e padrões que não estão lá, mas que uma falha cognitiva pode tratar de criar. Somente o homem para criar uma relação direta entre formas geométricas perfeitas e o mundo, como o próprio triângulo, que são úteis para a vida humana, mas claramente um reducionismo de algo complexo como o Universo. 

Como tudo isso, a ideia do sargento da Polícia Militar carioca de que eu era um elemento suspeito, possivelmente perigoso, que poderia estar carregando armas e drogas, nasce da sua incapacidade de ver o mundo para além das distorções cognitivas que sua mente lhe oferece. Agarrado, aferrado que precisa estar a algo que lhe pareça confortável e controlável, dentro de um mundo caótico, para o homem de farda só resta acreditar que um determinado grupo da sociedade – negros, com cabelo black, vestidos de maneira “desleixada” – são responsáveis por infringir as leis dessa sociedade. Isso é tranquilizador para ele, afinal havia outras milhares de pessoas passando na Rua Jardim Botânico, Zona Sul do Rio, no momento da abordagem. Há um conforto mental em recortar esse grupo a um número menor de elementos. Fui revistado sozinho, fui chamado de suspeito e, momentos depois, um segundo policial, 20 metros à frente, fez questão de perguntar se eu tinha realmente sido revistado. 

Essa falha cognitiva não é exclusiva da PMERJ. Joaquim Barbosa, na época em que era procurador da República, no Rio de Janeiro, foi, por duas vezes, confundido com manobrista na porta de restaurantes da Zona Sul carioca. Da mesma forma, não é raro escutar que não há negros com capacitação – seja como atores, escritores, jornalistas, advogados, matemáticos, biólogos – e que, por isso, áreas que necessitam de uma melhor formação educacional e tem maiores salários, são carentes de negros em suas fileiras. Uma chave de leitura é que, na verdade, o cérebro do branco brasileiro, aferrado ao conforto que é viver num mundo onde se pode excluir mais da metade da concorrência e colocá-la como base da pirâmide social, produziu uma falha cognitiva e está agarrado a ela. 

Eu gosto de terminar textos propondo soluções que acredito serem possíveis para o problema apresentado. Mas nesse caso, realmente não encontro nenhum caminho concreto. Apesar de detestar esperança, é com ela que fico. Fico porque a vida me apresentou amigos e uma parceira de vida brancos que vão para além de suas distorções cognitivas. Talvez eles apontem a outros privilegiados como lidar com suas incapacidades cognitivas.

* Assistente de direção e roteirista de TV