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A tábula rasa em mesa de bar

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Já se disse que o urbanismo ufanista dá preferência a projetos que suprimem radicalmente elementos naturais ou construídos, seguindo a doutrina da tábula rasa. Contudo, em momentos em que já ocorre retração urbana, o que se observa, de fato, é a simples criação de vazios.

Mesmo quando são mantidos os elementos arquitetônicos, ainda assim, pode persistir a substituição do tecido social. Não se trata, então, de eliminar edificações, mas de afastar um certo tipo de ocupante, mesmo que temporário. 

Cunhou-se para esses casos, a expressão “gentrificação”: termo, relativamente novo, importado do inglês. E, por mais que nos pareça simpático tornar alguma coisa gentil (gentle), não podemos esquecer que a elite, naquele idioma, como em outros, se faz apresentar como gentlemen. Assim, uma boa tradução para gentrification seria enobrecimento, até porque usamos expressões como nobreza d’alma. Porém, no caso do urbanismo ufanista, enobrecer os espaços parece mesmo querer dizer, na batata, reservar espaços para a “nobreza”. Em uma palavra: “revitalização”. Tábula rasa, como já vimos, foi o que se aplicou em áreas portuárias, porém, em outros casos, como no bairro carioca da Lapa, a revitalização foi se espalhando, sem que os prédios, em geral antigos, fossem substituídos. 

É nítido que implico com o termo “revitalização”: recuperar a vida significa afirmar que a área estava morta, o que, de forma alguma, é verdadeiro. Ainda que houvesse algo que não agradasse a certos agentes formadores do espaço urbano, nem por isso a vida estaria ausente.

Em bairros históricos, aliás, o paradoxo é evidente, pois o que leva ao súbito interesse por essas áreas é justamente a existência de prédios velhos, poupados pelo descaso do capital imobiliário, e que não sucumbiram à total ruína por serem utilizados pela parcela da população, que sob aquela ótica, deveria, pelo contrário, permanecer invisível.

Cidades, elevadas a Patrimônio da Humanidade pela Unesco, como Salvador ou São Luiz, tinham centros históricos largamente ocupados pelo chamado “baixo meretrício”, o que, de certa forma, ajudou a preservá-los. No Rio, diversamente, a maior “zona” que existia, o Mangue, foi substituída por um processo tipo tábula rasa, gerando o natimorto Teleporto. 

Na Lapa, entretanto, a recente gentrificação ocorreu pela estranha atração pelos mesmos atributos que levavam a que se a visse como área maldita: a boemia, propiciada pela abundância de imóveis grandes e subutilizados, aluguéis baratos e tipos humanos peculiares. E assim, vivendo-se ainda o clima de ruína aparente, nos anos 90, Lu Vicente, estando à frente de um antiquário na Rua do Lavradio, recebe a iniciativa de Lefê de Almeida e criam o Coisa d’Antiga, onde, o público se acomodava nos móveis postos à venda para ouvir Maria Antônia Lacerda, Eduardo Gallotti, Lucio Sanfilippo e tantos outros. 

Essa singela iniciativa, vale mencionar, é contemporânea a outro fenômeno que terminou por sacudir a cidade: o crescimento dos blocos de carnaval. Algumas figuras das rodas que se multiplicavam na Lapa eram habituais estrelas dos carros de som das novas e crescentes agremiações: “Carioca da Gema”, nome de uma das casas mais conhecidas na Lapa, foi, antes, um samba, composto pelo próprio Lefê, para o bloco ipanemense Simpatia é Quase Amor. Gallotti, ainda hoje, é compositor de diversos blocos. 

A partir daí a Lapa recupera o genius loci do samba carioca e atrai empreendimentos, alguns deles milionários. Surge como vitrine de marcas de cerveja e novo polo turístico da cidade, atividade que se mostra como uma das saídas para o retraimento do Rio. O boom efetivamente aconteceu, mas o paradoxo também: o peculiar atrai novas forças, que se impõem. A área, neste momento, é dada como revitalizada. Tábula rasa... travestida em mesa de bar.

* Arquiteto DsC em Urbanismo e também fundador do Bloco de Segunda