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Triste risco de retrocesso à barbárie

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Quarenta anos após a profissão de artista ser regulamentada no Brasil, o Supremo Tribunal Federal vai julgar a obrigatoriedade do registro profissional para profissões voltadas ao ramo de espetáculos e diversões. A atuação do STF gerou indignação e uma onda de protestos por parte da classe artística, que vê na inexigibilidade do registro, entre outras implicações, dificuldades de acesso a benefícios da previdência, tais como aposentadoria, licenças e auxílios, para citar alguns. Mas o fato nos convida a discutir desdobramentos menos concretos, mas que estão relacionados e são igualmente importantes.

Em um país onde Saúde e Educação, áreas prioritárias para o desenvolvimento de uma sociedade menos desigual, são historicamente sucateadas, qual importância das Artes? O que parece mais urgente: equipar hospitais e salvar vidas, construir escolas e buscar educação de excelência, ou investir em ações no campo das Artes? Nesse contexto cabe perguntar que serviços poderiam ser prestados à coletividade por meio da atividade artística. Embora a Arte encerre um fim, em si mesma, a pergunta é pertinente, mas se acompanhada de reflexão sobre o que vem a ser essencial para a vida humana e, paralelamente, de uma revisão de conceitos.

É a própria Organização Mundial da Saúde que define o termo “saúde” como algo que não deve ser caracterizado apenas pela “ausência de doença”, mas que consiste em uma condição de bem-estar generalizado: físico, mental e social. A Educação, por sua vez, não pode estar restrita ao acúmulo de conteúdos. Educar significa buscar a formação plena do indivíduo. Estimular sua inteligência afetiva, relacional e crítica. Isso inclui, necessariamente, um conjunto de experiências que vai muito além da construção de escolas, por exemplo. Certamente há ações concretas que precisam ser aplicadas em um projeto que pretende a melhoria das condições básicas da população, mas é preciso atentar para o fato que nem tudo que é essencial, e urgente, é mensurável ou imediatamente tangível. 

Sobre a função e profissionalização das Artes, por um lado, é lamentável que ainda seja necessário discuti-las, mas diante de um cenário de tantos retrocessos, dispensar o debate não é uma opção. Podemos pensar na Arte como recurso transformador, expressão da individualidade, depuração do ser humano ou mesmo como fonte de embelezamento do mundo. Essas são características frequentemente atribuídas às Artes e, em diferentes medidas, são verdadeiras. Contudo, a grande potência da Arte está na sua capacidade de multiplicar pontos de vista. 

Os girassóis pulsantes de Van Gogh em nada se parecem com as delicadas flores dos jardins de Giverny ou com os buquês alados de Marc Chagall. Tampouco com a flor solitária de Guernica.  Em comum só o fato de serem flores. Plantas que, na ponta dos pincéis, são multiplicadas em ângulos, cores e traços diversos ganhando contornos múltiplos e peculiares. Quantas versões de um mesmo tema o cinema pode recompor diante dos nossos olhos? E o que dizer dos voos da imaginação proporcionados pela aventura da literatura? A Arte cria, expressa, problematiza e prolifera diferentes visões de mundo, algumas delas inéditas. 

O mundo atual parece viver um ciclo que nos retrocede à barbárie. O avanço de candidaturas radicais, a intolerância, o maniqueísmo, a incapacidade de escuta e os discursos irascíveis vêm se fortalecendo e dificultando o diálogo franco e equilibrado, sem o qual é impossível encontrar alternativas para uma sociedade mais justa e plural. Por outras palavras: um ambiente onde diferenças sejam valorizadas e desigualdades minimizadas.  Portanto, em tempos em que uma polaridade perigosa de ideias e ações reinam, principalmente no Brasil, a Arte, mais do que nunca, é gênero de primeira necessidade.

* Artista profissional, mestre em teatro e doutora em Ciências