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Sempre aos domingos - A cultura da violência e a polícia de que precisamos

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Imagino a cara dos que pregam a volta dos militares ao poder sendo informados que, no primeiro mês da intervenção militar na Segurança do Rio, os índices de criminalidade subiram. O próprio porta-voz da operação, coronel Roberto Itamar, reconheceu que o patrulhamento foi ineficaz. E tentou explicar ao “Globo”: “O que tem sido feito são ações pontuais e de curta duração para que se possa, baseado no trabalho de inteligência, atingir as organizações criminosas de maneira mais efetiva”. Mas vem cá: que inteligência? 

No início do mês, este JB publicou uma reportagem que mostra que, em 2016, o gasto com policiamento mais que dobrou em relação ao ano anterior, enquanto as despesas com inteligência (aquelas que vão do uso de drones para monitoramento até um laboratório de perícia estilo CSI) foram nulas. Zero real. Nem vou entrar aqui na questão do salário da polícia ou de equipamentos, tipo carros ou armamentos. E não é uma prerrogativa do Rio. Em quase todos os estados brasileiros é assim. 

O combate ao crime passa por várias estratégias: da alta no investimento em inteligência à descriminalização das drogas, passando pelo controle de fronteiras e pelo o expurgo da tal “banda podre” da polícia, envolvida até a raiz dos cabelos em corrupção, milícias, etc. etc. Mas há na discussão também uma nefasta herança dos anos do golpe que os defensores de militares-no- poder não gostam de enxergar: a violência institucional. Justiça seja feita. Trata-se de herança de um Estado oligárquico desde sempre, mas aprofundada a partir de 1964. 

No livro “Cinema Novo: um balanço crítico da retomada”, Luiz Zanin Oricchio faz pontes entre as produções cinematográficas brasileiras e a realidade do país desde os anos 1990. E entre esses filmes e a produção do cinema novo em meio à ditadura militar. É leitura obrigatória para quem se interessa por cinema e para quem gosta de entender como o Brasil se enxerga. Oricchio observa que sertão e favela, ao longo da história audiovisual, estão entrelaçados e são modelos de observação da realidade nacional. Ambos remetem à Revolta de Canudos, “emblema da dívida social brasileira”, num aspecto que nosso Estado, no geral, e nossa polícia, em particular - com o apoio de estratos diferentes do pensamento conservador (de todas as classes) e da mídia – encamparam: o da criminalização da pobreza.

Travestido de “ameaça à República promulgada”, assim Oricchio define o massacre: “Em nenhum momento, o governo republicano reconheceu que as forças que sustentavam Canudos se alimentavam da figura carismática do Conselheiro, mas tinham seu caldo de cultura sobretudo na fome, na seca, na miséria sem esperança que habitavam o sertão. O Conselheiro era um guia, mas era visto também como esperança de redenção, neste mundo e no outro. Naquela ocasião, como em outras, a questão social brasileira foi tratada como caso de polícia”. 

Voltando à NatGeo sobre a qual falávamos na semana passada, percebe-se que o olhar enviesado do Estado/polícia não é exclusividade brasileira. O artigo “Aquilo que nos divide” conta que na Universidade do Estado de Washington, nos EUA, está em desenvolvimento um programa de treinamento de policiais com base em simuladores que variam os perfis demográficos das pessoas encontradas em situações em que a polícia precisa escolher rapidamente se usa ou não força letal. “O equipamento varia identidades étnicas e raciais e assitua em cenários destinados a medir e contrabalançar vieses”, diz a revista. “Desse modo, quando os policiais treinam os fundamentos para lidar com situações tensas, ao mesmo tempo aprendem quando e como tratam negros e hispânicos diferentemente de brancos”. Lá, como cá, tudo que não é branco é logo criminalizado.

Não se trata de “ser condescendente com a bandidagem”, como gostam de dizer conservadores. Trata-se de reduzir baixas em ações policiais em comunidades onde todos são colocados no mesmo saco da criminalidade. Porque não enxergar o pano de fundo social do buraco em que estamos e pregar cegamente a tese do “bandido bom é bandido morto” não é só indigente do ponto de vista intelectual, mas ingênuo na concepção do que queremos definir como “criminoso”. E que pode morar num prédio à beira-mar no Leblon, como o ex- governador Sergio Cabral. Ou em Brasília. 

Diz Oricchio: “Enfim, como é perceptível para qualquer morador de cidade grande no Brasil, o ódio social atingiu um nível sem precedentes. Não basta roubar; é preciso castigar a vítima. Humilhá-la, torturá-la, eliminá-la. Não existem mais os ladrões românticos. Mesmo os verdadeiros profissionais, aqueles que só acarretam o sofrimento, digamos, indispensável para concretizar o crime, estão em falta. Não se trata mais de reprimir a criminalidade ou de confiar que programas atenuantes do apartheid social diminuam a violência. Esta, ao que parece, já se disseminou pelo tecido social, ganhou autonomia de voo, e temos apenas uma leve intuição daquilo que está em sua raiz”.