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Três negros na noite paulistana  (homenagem a Marielle)

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Noite paulistana na Vila Ré. Noite gelada, regada pela garoa. Os primos Ygor (16), Cayré (17) e Yago (13) saem do fast-food. Entre comentários sobre as vitórias do Palmeiras e brincadeiras, os garotos, voltam para casa, a casa da avó, a corinthiana Márcia. 

Na caminhada são abordados por uma viatura da Polícia Militar. Brecada brusca, roda direita junto ao meio fio. Portas fechadas ruidosamente. Os coturnos triscando o asfalto. Mãos nos coldres. 

Gritos e safanões. “Mãos na parede, pernas abertas!” berram os policiais. Giram os cassetetes para intimidar os meninos. Em seguida, batem no fígado da rapaziada, enquanto fazem a revista. Não encontram coisa alguma além dos celulares e dos tostões que sobraram dos burgers e das batatas fritas. 

Começa o interrogatório. Primeiro Cayré, aluno da Fatec, curso profissionalizante de Comércio Exterior. “Aonde vai, moleque”? “P’ra casa da minha avó, logo ali, dois quarteirões pra frente”. 

“E vc, menino?”. Yago responde que está na 7 ª Série. 

“Também mora na casa da vovó, hein?”. Yago responde com um meneio de cabeça. A voz quase não sai. O meganha insiste. Yago consegue emitir o som do sim. 

Os policiais ainda rodam o cassetete. Chegam nos 16 anos de Ygor. O garoto observa os fardados da altura de 1,90m. “E vc, grandão, também vai pra casa da vovó’? Ygor responde que sim, arrastando um sotaque de erres e ss carregados. O meganha tem um esgar de  estranhamento. Os três “investigados” sintonizaram a sensação de perplexidade dos investigadores: um negro com sotaque.  Os olhares e os sestros faciais dos policiais denunciavam febris imaginações. Estariam interrogando um haitiano, um desses negros imigrantes que roubam os empregos dos brasileiros, ou talvez um africano trapaceiro? Ainda, pior, um crioulo venezuelano empenhado em preparar a revolução bolivariana? 

Yago percebe os desencontros que atormentavam o cérebro do brazuca, moreno escuro e uniformizado. Rapidamente, completa, “Eu morro em Estocolmo”. 

A desconfiança se converte à surpresa. “Estocolmo?” pergunta o mais fortinho e mais simpático. 

“Estocolmo, na Suécia”, explica Ygor. 

“Você fala inglês?”, atalha o outro, o mais carrancudo. Ygor confessa: “Falo sueco, inglês e espanhol, esjtou aprendendo alemão. Quero esjtudarr engenharria e trabalharr numa empresa alemã.”

Knock-down. Abalroado pelo complexo de vira-lata, o policial apoia a retaguarda na viatura e balbuciando um murmúrio, anuncia: “Ah, então, bem, estão liberados.” 

Yago, Cayré e Ygor chegam em casa. Contam a estória. A avó pergunta a Yago, o menino de 13 anos: você ficou assustado ?.  Yago: “Não, vó. Meu pai já disse que isso sempre acontece com os negros”. Ygor foi morar na Suécia aos 6 anos de idade. A mãe, Viviane, passista da Nenê de Vila Matilde trabalhava num call center em São Paulo. Casou-se com um sueco, médico psiquiatra, hoje funcionário de um hospital em Estocolmo. Há dez anos na Suécia, Ygor recebeu todas as benesses do Estado de Bem Estar.  Saúde, educação, treinamento esportivo, atendimento psicológico. Adquiriu cidadania sueca. Só vem ao Brasil para visitar a avó e matar as saudades do Verdão, paixões que não abandonou e que não o abandonam. 

Não quer voltar. A trombada policial só confirmou a sensação de não pertinência a uma sociedade hipócrita, violenta e racista. Os policiais que abordaram os meninos dificilmente seriam aceitos como brancos numa inspeção ariana ou anglo-saxã. Nos anos de chumbo da ditadura brasileira, a professora exilada, tez mediterrânea, fazia inscrição em Oxford. A funcionária da Universidade inglesa perguntou: “cor?”. A professora respondeu “branca”. Depois de registrar as respostas, a inglesa indagou “a senhora se considera realmente  branca?”   

Os policiais morenos assumem a “branquice” da alma. O “negro de alma branca”, expressão que trai a síndrome de Estocolmo: o submetido se entrega às simpatias pelo opressor. A intimidação e o espezinhamento seculares    escancaram sua verdade. 

Os bem-intencionados, cultos e provavelmente brancos, os de cima, lamentam intelectualmente a exclusão como fenômeno  socioeconômico. Mas suas boas intenções não alcançam compreender a dor profunda infligida aos negros brasileiros de carne e osso maltratados no calvário quotidiano da exclusão e da discriminação.  

* Economista paulista, estudou no Santo Inácio quando morou por quatro anos no Rio