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O perturbador embaralhamento do discurso no Brasil 

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Nessa semana trevas, li da querida amiga Luciana Hidalgo, com quem tive o privilégio de trabalhar neste mesmo jornal há mais de 20 anos, um texto que me deixou reflexivo, especialmente após o trauma e a depressão com a execução da vereadora Marielle Franco. Dizia ela: 

“Outro dia ouvi um jornalista falando sobre ‘comunismo’ numa rádio como se fosse uma ‘ameaça’ atual, como se vivêssemos em plena Guerra Fria. Achei tão engraçado que escutei até o fim. Dias depois, numa conversa sobre programas sociais na França, alguém perguntou: “Ué, mas a França é comunista?” Me contive e respondi calmamente: “Não, querido, a França é capitalista. E mais: o comunismo hoje não é ameaça em lugar algum”. 

Triste notar que uma parte da população brasileira estacionou no vocabulário dos anos 1960/70, enquanto na Europa o “comunismo” não é mais visto como ameaça nas conversas em cafés, muito menos em rádios. A saber: o muro de Berlim foi derrubado há quase 30 anos! Cuba recebeu recentemente o Obama! A “comunista” China é hoje uma das maiores economias no ranking dos países... capitalistas! A Coreia do Norte é um país tão fechado que pelo visto não tem o menor interesse em espalhar sua ideologia além das suas fronteiras; etc. etc. 

Fica difícil ouvir um jornalista brasileiro evocando erros e crimes da velha URSS, num terrorismo ideológico caduco, só para derrubar ideais legítimos da esquerda hoje. Isso é de uma desonestidade intelectual inaceitável. O combate às violações de direitos humanos e à desigualdade social não é “comunismo”. Aliás, não conheço ninguém de esquerda hoje que queira um regime comunista soviético stalinista. Ninguém. O que a maior parte da esquerda brasileira quer hoje é o que muitos países europeus capitalistas (não comunistas) já têm: saúde e educação gratuitas para todos, um salário-mínimo de aproximadamente R$ 4 mil (como na França), um seguro-desemprego decente e durável, auxílio-moradia para famílias desprivilegiadas (não para juízes ricos, como no Brasil), direito humanos e trabalhistas assegurados. Enquanto na Europa esses são “valores republicanos”, aqui é “comunismo”. 

Percebo que conceitos como direita e esquerda se embaralharam muito nas mãos de políticos (daqui e de alhures) que legislam mais de olho em seus grupos de interesse do que de seus países. Acredito que o embate se encontra mais no terreno das ideias progressistas e das conservadoras: entre gente que tem a certeza de que 10% da população terem bem mais que metade do PIB é um fato que está, sim, no centro dos debates sobre segurança pública e prosperidade no país; e gente que acha que combate à pobreza é exterminar os pobres e segurança só se consegue quando se arma a população, se constroem muros e o Exército vai para as ruas. 

Um dos piores desserviços que o PT fez às ideias progressistas (geralmente associadas à esquerda, mas não monopólio dela) foi ter se deixado corromper em tantos níveis que sua própria identidade foi espertamente dizimada pelos conservadores e coronéis (não os militares) de sempre. Paralelamente, fez acordos e associações com esta mesma elite conservadora e coronelista para garantir seu naco de governabilidade. Esses foram os primeiros a abandonar o barco. E nunca o partido fez uma autocrítica honesta sobre isso. O que não me impede de enxergar os enormes avanços sociais conquistados nos governos petistas. E também na estabilidade redentora da moeda – e a corretíssima Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) - ainda no governo tucano de FHC. 

A LRF é de direita? Não acho. Considero, inclusive, um avanço para a gestão do dinheiro público. O combate à inflação é de direita? Não, penso que é uma preocupação econômica basilar em qualquer governo (quem viveu a hiperinflação sem conta remunerada sabe bem do que eu falo). O Bolsa Família é de esquerda? Nunca. Trata-se de um imperativo num país tão desigual e com oportunidades tão concentradas como o nosso. As cotas são coisa de comunista? Só se você nunca ouviu falar em escravidão e suas consequências históricas num colégio. 

Conceitos se truncam e é preciso fazer uma última e preciosa distinção quando se fala em discurso no Brasil hoje: porque há os que acham que se todo mundo viver melhor, toda a sociedade lucra, em todos os aspectos. E há os que pensam que farinha pouca, meu pirão primeiro e morte aos diferentes. Em qual grupo você se encaixa?