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O golpe aos 50 anos e as opções econômicas da ditadura

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Efemérides e suas repercussões dizem muito mais sobre a época em que acontecem do que sobre o evento recordado.Na passagem de 50 anos do golpe de 1964,o que mais chama a atenção – à parte a bizarrice de algumas poucas famílias pedindo nova intervenção militar – é um esforço para “equilibrar” as ameaças que o país supostamente vivia na primeira metade dos anos 1960. Jornais, líderes políticos e outros – apoiadores ou vítimas da ditadura– repetem hoje com poucas nuances a argumentação dos golpistas de então. A ruptura da democracia teria sido um desfecho desagradável, mas inevitável.

Há controvérsias e erros importantes, de aspectos não econômicos da história, nesta interpretação. Mas para uma coluna de economia, o fato principal que ela oculta é outro: a disputa não era entre uma possível “ditadura comunista” e a que se instalou, mas sim entre duas possibilidades de economia, e sociedade, capitalistas.

O Brasil vivia sim uma encruzilhada. Após o lançamento da indústria de base e a efetiva criação do Estado brasileiro, a Era Vargas também havia sido marcada por algumas importantes medidas de proteção social (ainda que restritas aos trabalhadores urbanos). Após o exitoso esforço de industrialização concentrado durante o governo JK (1956-61) –que não promoveu avanços no campo social – assistia-se a uma forte desaceleração.

O debate sobre as causas do “esgotamento do modelo” de então é muito interessante e atual, assim como as alternativas colocadas para superá-lo. O aprofundamento dos direitos sociais e as “reformas de base”defendidas pelos movimentos sociais e pelo governo Goulart eram uma via possível, dentro da ordem, para a retomada do desenvolvimento. Um desenvolvimento que conciliasse a sofisticação da estrutura produtiva, a integração do mercado nacional e a redução das desigualdades sociais. Um caminho civilizatório traçado há muito pelas economias de fato desenvolvidas. Esta via foi derrotada pelo golpe, e não é outro o seu principal significado.

Nesta linha vão as reflexões aprofundadas dos colegas Eduardo Fagnani (em entrevista ao Jornal da Unicamp) e Pedro Paulo Bastos (Texto para Discussão IE/Unicamp), cuja leitura se recomenda.

Durante a ditadura, manteve-se a estratégia “desenvolvimentista” de modernização e mudança estrutural com planejamento e intervenção estatais. Mas foi na questão social que a opção conservadora se explicitou. Ao lado do freio nas conquistas de direitos e da deterioração nos serviços públicos (notadamente na educação), o principal fenômeno foi o achatamento dos salários de base – propiciado por várias medidas de arrocho, repressão aos sindicatos e fatores demográficos e migratórios.

A concentração de renda piorou,e sua mensuração e significado suscitaram explicações diversas – entre as quais a famigerada “teoria do bolo”. Mais importante que ela, a controvérsia entre dois dos maiores economistas brasileiros: Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares.

Para Furtado (escrevendo no início dos anos 1960), a industrialização brasileira era, em si, um processo ligado à concentração: movida pela modernização dos padrões de consumo da parcela mais abastada e incorporando progresso técnico importado, ela ao mesmo tempo era produto e perpetuava a desigualdade. Mais importante, a estreiteza do mercado consumidor (e do setor de bens de capital) e a redução progressiva na relação produto-capital (decorrente desta concentração de investimentos no setor duráveis), levariam à tendência de estagnação.

Tavares e alguns seguidores, anos depois e diante da aceleração do crescimento, desenvolveram explicação contrária: a concentração de renda não só não era um obstáculo ao crescimento, como foi funcional a ele. Nesta leitura, o caminho aberto a partir das reformas e políticas do PAEG (1964-66) para enfrentar o problema da estagnação foi o privilégio às camadas médias e altas (que aumenta a demanda por bens duráveis) e a compressão da remuneração dos de baixo(que eleva os lucros).

A realidade – e a percepção dela pelos beneficiados – foi ainda mais perversa pelo fato do achatamento dos salários de base ter possibilitado a ampliação do leque salarial e a mobilidade (movida a crédito para consumo e habitação) para estratos médios. Não surpreende o apoio que o regime teve nestas classes durante o período de alto crescimento, a despeito do autoritarismo. Neste sentido, o legado da ditadura foi uma sociedade não só mais desigual, mas também menos coesa e solidária.

Aos 50 anos daquela ruptura decisiva, ecos deste legado são claros entre os saudosistas da ditadura, mas não só. As explicações para isto são complexas, mas certamente incluem a reação a uma outra combinação entre dinamismo econômico e distribuição de renda, que nos últimos anos vem sendo experimentada, ainda que com muitos problemas, no Brasil.

Como argumentado na coluna anterior, esta combinação é a principal “herança” do governo anterior para a economia e a sociedade brasileiras. Ela precisa de renovação, mas não a desmontagem que está implícita na maioria das propostas predominantes no debate econômico atual. Felizmente hoje – e oxalá para sempre – cabe ao voto do conjunto da população a decisão sobre estas questões fundamentais.

[*] André Biancarelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição e coordenador da Rede Desenvolvimentista.